8 de Outubro, 2024

26 de novembro, 2022

Iniciativas diversas de balanço, de sistematização de experiências, de reflexão sobre acontecimentos relevantes, de debate sobre as datas críticas da História recente de Portugal e ainda de avaliação global do próprio 25 de Abril têm vindo a decorrer nos últimos meses em vários fóruns e espaços media e é provável que se venham a intensificar à medida que nos aproximamos das comemorações dos 50 anos do Dia da Liberdade.

O 25 de novembro surge, como não podia deixar de ser, como uma data que suscita análises e declarações paradoxais e até controversas. Vasco Lourenço deu nota recentemente de referências à data incompatíveis com a “verdade histórica”. Para aprofundar um tema tão exigente quanto este nada melhor que mobilizar as competências de quem sabe. Irene Pimentel autorizou-nos a publicar um importante ensaio publicado em 25 de Novembro de 2020 no Jornal Público. Aqui fica o texto da historiadora. SF

(Editado por SF | Destaques)

por Irene Pimentel

As opiniões sobre o que se passou em 25 de Novembro de 1975 dividem-se consoante o lugar no espectro político em que são expressas. Penso ter chegado a hora de fazer a História dos acontecimentos de há 45 anos.

À memória, com gratidão, de Luís Ferreira de Macedo

Num colóquio, em 2009, moderei uma mesa na qual estiveram presentes militares de Abril, na maioria pertencentes ao campo derrotado em 25 de Novembro de 1975. A conversa desviou-se para os mistérios dessa data e cada um revelou ter testemunhado factos diferentes, estando todos genuinamente a dizer a verdade. Assistiu-se então a um «efeito Rashomon»[1] ou ao que retrata a parábola indiana dos «Cegos e o Elefante»: um grupo de invisuais que nunca se depararam com um elefante tentam conceptualizá-lo através do toque; mas, como cada um acede a uma parte diferente do corpo do animal, descrevendo-o com base nessa experiência limitada.

Ora, confrontar todas as perspectivas e narrativas dos factos, interpretando-as e tendendo para uma procura de uma verdade que ultrapasse as memórias discordantes e individuais, é o que faz a História. E esta está longe de ter sido feita, no caso do «25 de Novembro 1975», para além do discurso dos vencedores.

Acontecimentos a ter em conta numa história de 25 de Novembro de 1975

Correspondendo ao desafio de um dos protagonistas do campo vitorioso, general Ramalho Eanes, ao afirmar, em 2015: «os momentos fracturantes não se comemoram, recordam-se (e…) apenas para se reflectir sobre eles», lembro, em estilo telegráfico, acontecimentos que penso dever ser tidos em conta numa história de 25 de Novembro de 1975.

29 de Maio

Reunião em Bruxelas no âmbito da NATO com o presidente e secretário de Estado norte-americanos, Ford e Kissinger, que, dois dias depois, se encontraram, em Madrid, com Arias Navarro e Francisco Franco.

8-30 de Julho

Os «gonçalvistas» – apoiantes de Vasco Gonçalves, chefe dos governos provisórios II a IV -, apresentaram o «Documento-Guia da aliança povo-MFA».Suceder-se-iam, no mês seguinte, documentos de outras duas facções militares: o do «grupo dos nove» e, autonomizando-se dos «gonçalvistas», a «Autocrítica Revolucionária do Copcon». O PS promoveu manifestações, em Lisboa e no Porto, exigindo, com o apoio do PPD, a demissão de Vasco Gonçalves, enquanto o PCP reivindicava a dissolução da Assembleia Constituinte

Criação, a 30, no Conselho da Revolução (CR), de um triunvirato formado por Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e Francisco Costa Gomes, que fracassou na tentativa de superar as divisões no MFA.

8-22 de Agosto

Tomada de posse do V Governo, de Vasco Gonçalves, e afastamento do CR de Melo Antunes e outros elementos do «grupo dos nove».

O PS exigiu o desmantelamento da 5.ª Divisão e a demissão de Vasco Gonçalves, que, no dia 18, proferiu um discurso exaltado, em Almada. Reunião do Presidente da República (PR), general Costa Gomes, com Ernesto Melo Antunes e Otelo Saraiva de Carvalho, que rompeu com Vasco Gonçalves, da qual resultou o documento de compromisso «Plano Político do MFA». Transferência para a base aérea de Cortegaça de oficiais, aviões e helicópteros, pelo Estado-Maior da Força Aérea (EMFA). Criação pelo PCP da Frente de Unidade Popular (FUP), integrada por forças de extrema-esquerda, que só duraria até dia 28, com a saída daquele partido.

30 de Agosto

Nos EUA, o chefe da CIA Vernon Walters enviou um documento a Kissinger alertando: «Portugal à beira da guerra civil». Demissão do V Governo de Vasco Gonçalves, cuja nomeação para CEMGFA foi recusada pelo PS e PPD, com a aceitação posterior da Assembleia do MFA.

Setembro

O PR indigitou para primeiro-ministro do VI governo provisório o almirante Pinheiro de Azevedo (19).

O CR passou a ser dominado pelo «grupo dos nove». Enquanto em Lisboa e no Porto, se sucediam manifestações, da FUR – sucedânea da FUP, sem o PCP -, e dos Soldados Unidos Vencerão (SUV), o PS e o PPD apoiavam o VI Governo.

Outubro – 9

Reincorporação de militares da RM do Porto em novas companhias do Regimento de Comandos (RG) e formação do Agrupamento Militar de Intervenção (AMI).

Novembro

7 – Após selagem das instalações da Rádio Renascença (RR), Pinheiro de Azevedo ordenou a destruição das respectivas antenas, pelo Regimento de Comandos (RC), quatro dias depois da deslocação do embaixador norte-americano, Frank Carlucci, ao norte, onde a RM passou a ser chefiada pelo general de direita, Pires Veloso.

17-24 – O CEMFA, general Morais e Silva, ordenou a passagem à licença registada de 1.200 pára-quedistas da Base-Escola de Tancos, onde a ordem foi repudiada. O CR nomeou o brigadeiro Vasco Lourenço comandante da Região Militar (RM) de Lisboa, em substituição de Otelo Saraiva de Carvalho, que continuava à frente do Copcon. Na sede desta unidade repudiaram essa nomeação, confirmada pelo PR e pelo CR, mas decidindo não levar a cabo qualquer operação que servisse de pretexto a uma acção da direita e manifestando apoio à luta dos pára-quedistas de Tancos.

25 de novembro

Na madrugada, pára-quedistas ocuparam as bases aéreas de Tancos, Monte Real, Montijo e o Comando da 1.ª Região Aérea de Monsanto, exigindo a demissão de Morais e Silva e detendo o comandante, general Pinho Freire. Este informou o PR, Ramalho Eanes e o CEMFA, que ordenou a concentração de pára-quedistas fiéis na base de Cortegaça.

6 h – O RALIS tomou posições nos acessos à auto-estrada do Norte, ao Aeroporto da Portela e na zona de Beirolas, enquanto tropas da Escola Prática de Administração Militar (EPAM) ocupavam os estúdios da RTP.

9 -13,30 h – Reunião entre o PR, os elementos do CR e os comandos militares, do qual resultou um aviso do EMGFA de que seria usada a força contra os revoltosos. Convocado pelo PR, Otelo Saraiva de Carvalho foi instado no Copcon a não se dirigir a Belém. Decidiu o contrário e ouviu de Costa Gomes que o Copcon ficaria sob o seu comando.

16 h – Após ter contactado Álvaro Cunhal e a Intersindical Nacional, o PR obteve do PCP a confirmação de que não mobilizaria os seus militantes para qualquer acção de rua.

17, 30 h – Apelo na Emissora Nacional, ocupada pelo Copcon e pelo Regimento de Polícia Militar (RPM), ao envio de reforços para essas unidades, que mobilizaram as suas forças, enquanto o capitão Duran Clemente, da EPAM, apelava na televisão à mobilização popular junto dos quartéis. Às 21,10 h viria a ser subitamente interrompido, prosseguindo a emissão do estúdio do Porto.

19,15 h – Os pára-quedistas ocupantes da base de comando aérea de Monsanto renderam-se ao RC da Amadora, que avançou contra as unidades do RPM, RALIS, EPAM e Regimento de Artilharia de Costa (RAC).

Pelas 21 h – O general Costa Gomes, ao lado de Otelo Saraiva de Carvalho, comunicou a imposição do estado de sítio na RM de Lisboa. Pouco depois, o general Pinho Freire anunciou a retoma do comando da 1ª Região Aérea de Monsanto e, mais tarde, render-se ia a Base de Monte Real.

26 de novembro

Terminava o «25 de Novembro», não sem que o RC da Amadora atacasse a unidade da RPM, provocando vítimas mortais de ambos os lados.

 27-29 de novembro

Cerca de cem oficiais de esquerda foram detidos, Otelo Saraiva de Carvalho e Carlos Fabião foram destituídos dos cargos de comandante do Copcon e de CEME. Este foi atribuído ao então coronel – depois general – António Ramalho Eanes. O VI Governo Provisório retomava funções, enquanto ocorriam alterações em sectores das Forças Armadas e no CR.

Algumas observações

As opiniões sobre o que se passou em 25 de Novembro de 1975 dividem-se consoante o lugar no espectro político em que são expressas. Enquanto uns consideram ter-se tratado de uma tentativa de golpe de Estado comunista e da extrema-esquerda, outros afirmam ter havido uma armadilha, lançada pelas forças de centro-esquerda, direita e extrema-direita às de esquerda e extrema-esquerda.

O oficial spinolista António Ramos, insuspeito de esquerdismo, confirmou que, no 25 de Novembro, terá havido diversas «cascas de banana» lançadas à extrema-esquerda, que nelas caiu. Assinalou entre estes, a extinção administrativa do Corpo de Tropas Pára-quedistas e o corte da Estrada Nacional 1. Afirmou que o PCP não participou na «intentona», que, por isso mesmo, fracassou, pois faltara a «máquina de informações» comunista.

Tudo aponta para que houve provocações às quais responderam algumas das forças derrotadas, enquanto outras actuaram defensivamente. No campo ofensivo e vitorioso, terão existido provavelmente diversos «25 de Novembro». Vasco Lourenço assinou, na semana passada, uma «reflexão», enaltecendo a actuação do «grupo dos nove», ao qual pertenceu, por ter evitado, há 45 anos, um outro “28 de Maio” e assinalando ter havido uma «esperada tentativa dos não democratas» para terminar com a herança do «25 de Abril».

Lembre-se ainda que outro elemento do «grupo dos nove», Ernesto Melo Antunes, defendeu logo então na TV que sem o PCP não se poderia construir em Portugal uma sociedade democrática, respondendo provavelmente a veleidades de proibir esse partido e outros grupos de esquerda. Vasco Lourenço assinalara já anteriormente que, no seio do «grupo dos nove», que não teve qualquer iniciativa de ataque, em 25 de Novembro de 1975, nem todos aprovaram o chamado «plano dos coronéis».

Neste plano, encabeçado por António Ramalho Eanes, incluía-se, entre outros fins, o afastamento dos generais Otelo e Fabião, a substituição pelo AMI do Copcon e o controlo do Serviço Director e Coordenador de Informações (SDCI), aos quais foi atribuído – embora sem provas – a autoria da «intentona», pela Comissão de Inquérito aos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, da lavra dos oficiais vitoriosos. No respectivo relatório, de Janeiro de 1976, esta comissão reconheceu, não por acaso, que, só após «decorrido largo tempo», se chegaria objectivamente a uma conclusão sobre o «25 de Novembro». Penso ter chegado a hora de fazer a História dos acontecimentos de há 45 anos.


[1] Nome do filme de 1950, de Akira Kurosawa, visto no mundo ocidental como revelando a incapacidade de se chegar à “verdade única” sobre um evento, devido aos testemunhos conflituantes motivados pela “areia movediça do ego”.

Nota da autora (acrescentada às 19h de 25/11)

Alguns leitores chamaram-me a atenção para alguns erros factuais e sugeriram correcções, algumas das quais penso dever fazer. De qualquer forma, os erros factuais não alteram em nada o meu propósito neste artigo. Este artigo não é uma simples cronologia: é uma escolha de factos da minha parte que penso poderem esclarecer o que se passou em 25/11. Tive acesso a 9000 caracteres, quando tinha escrito pelo menos o triplo e tive de “cortar” vários excertos. Dito isto:

1. Vou reler e confirmar a minha fonte sobre a reivindicação pelo PCP da dissolução da Constituinte.

2. Com os cortes que fiz surge o PCP a criar a FUP, quando criou a FUR, ou participou na criação da mesma, com outras forças políticas da chamada esquerda radical ou extrema-esquerda. A FUR, segundo penso, terá durado só uns dias e depois as outras forças, sem o PCP, criaram a FUP.

3. Melo Antunes refere a palavra “socialismo” de facto na sua declaração, mas penso que também se referia à democracia, e para o meu objectivo não o citei (por isso não coloquei entre comas o que disse), e preferi alterar essa palavra que à época era utilizada até pelo PPD e que ainda hoje faz cair em erro. Penso que não estou a desvirtuar o sentido que Melo Antunes pretendeu dar. Sou historiadora e, numa investigação história, tê-lo-ia citado. De qualquer forma, não modifica de forma nenhuma o que pretendi dizer. Irene Flunser Pimentel​

Foto |Um militar controla as viaturas à entrada de Lisboa no 25 de Novembro de 1975 © MANUEL MOURA/LUSA

Foto de Destaque | Foto Rendição dos pára-quedistas em Tancos no 25 de Novembro de 1975© Luís Vasconcelos

Editor

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