TRIBUNA | Fascismo nunca mais é o lema mais importante que a sociedade portuguesa alguma vez teve
5 de dezembro, 2022
TRIBUNA | Quando falamos de fascismo, afinal do que é que estamos afalar?
SF | O assunto não é retórico. Admite-se que quanto mais clara estiver a representação ideológica, política, cultural e social do fascismo nas cabeças de quem deseja combatê-lo com eficácia, melhores condições existirão para que ele saia derrotado. Dito de outra maneira, o “fascismo nunca mais” não deve ser slogan ancorado numa visão abstrata, restrita e passadista de um conceito que pode ser delimitado nos seus contornos de forma razoavelmente segura.
Em última análise regressamos à interrogação que tem surgido com alguma pertinência na última década: como podemos e devemos combater a extrema-direita em ascensão no mundo, na Europa e em Portugal?
Carlos Martins tratou o primeiro tema, o dos fascismos, num livro com título particularmente apropriado e relacionado com a pesquisa que também nos motiva “Fascismos: para além de Hitler e Mussolini”.
Outros textos neste campo temático serão exaustivamente tratados aqui no SEM FRONTEIRAS, Então sem demoras avencemos para a reflexão do Carlos Martins. SEM FRONTEIRAS
“FASCISMO NUNCA MAIS” É O LEMA MAIS IMPORTANTE QUE A SOCIEDADE PORTUGUESA ALGUMA VEZ TEVE
Por Carlos Martins
É com “fascismo nunca mais” que, na sociedade portuguesa, se exprime o repúdio ao regime de Salazar. Reconheço a carga que a palavra “fascismo” legitimamente ganhou e, independentemente da classificação que acho mais correta, nunca pensaria manifestar-me contra a existência desta frase. De igual modo, jamais ousaria sugerir que os que lutaram contra a ditadura deixassem de se chamar a si mesmos de antifascistas (todo o meu respeito por eles). Há coisas mais importantes do que ser rigoroso e, para todos os efeitos, não deixa de ser verdade que a ditadura portuguesa integrou elementos fascistas e que, no sentido que a palavra adquiriu, foi, sem dúvida, “fascista” (quem quiser utilizar a palavra com esse sentido tem, obviamente, todo o direito de o fazer). “Fascismo nunca mais” é, muito provavelmente, o lema mais importante que a sociedade portuguesa alguma vez teve e estou totalmente de acordo com a ideia que ele transmite. Que o repitam por várias gerações! Demarco-me, assim, de todos os que possam aproveitar-se do que quer que eu aqui diga para tentar legitimar os anos de repressão salazarista.
Dito isto, julgo ser legítimo tudo o resto que escreverei neste artigo. Vem isto a propósito de uma entrevista que me fizeram por causa do livro que escrevi (Fascismos: Para Além de Hitler e Mussolini) e que surgiu no DN com o título “O Estado Novo não pode ser classificado como fascista” (na verdade, não acho que esse seja o ponto principal da minha entrevista e muito menos do livro). Compreensivelmente, algumas reações menos positivas não se fizeram esperar. Devo dizer que procuro evitar este tipo de confrontos, pois sou “apenas” um académico apaixonado pela investigação, e abro aqui uma exceção para me explicar e evitar mal-entendidos. De resto, julgo que este tipo de polémicas está um pouco ultrapassado e, apesar de continuar a acreditar que as classificações dos regimes e partidos são importantes, sou o primeiro a reconhecer que há muitos outros tópicos tão ou mais relevantes. Em todo o caso, darei uma breve explicação, baseada no meu trabalho de investigação.
O fascismo e a classificação do regime português
Talvez a afirmação mais concisa sobre o ponto em que se encontra a investigação internacional no que toca à classificação dos diversos “candidatos” a regimes fascistas está numa obra editada, entre outros, por Ismael Saz. Nela, é-nos dito que “existe um consenso relativamente amplo em vários campos de estudo historiográfico que vê as ditaduras italiana e alemã como os únicos regimes totalmente fascistas” (Reactionary Nationalists, Fascists and Dictatorships in the Twentieth Century, 2019, p.10). Estes dois regimes tiveram como ponto de partida a chegada ao poder de um movimento que se dizia “revolucionário”, apelava à ação direta, à mobilização das massas populares, ao culto da violência, e fazia uso de todo um conjunto de rituais, símbolos e liturgias, além de procurar alterar as formas de organização da sociedade e a relação das massas com os líderes. Além disso, os movimentos fascistas tinham como objetivo (sublinhado por Roger Eatwell) a criação de “novas elites heroicas” que substituíssem as elites “decadentes”, distinguindo-se das ditaduras criadas sem que as classes dominantes necessitassem de fazer uma “aliança” com um movimento deste tipo. Entre os muitos agrupamentos do entre-guerras passíveis de serem classificados como fascistas encontram-se a Guarda de Ferro romena, o Partido da Cruz Flechada húngaro, a BUF britânica, o Nasjonal Samling norueguês, a AIB brasileira, o PPF francês, o Rexismo belga da fase tardia, a Falange espanhola, o Nacional-Sindicalismo português, a Falanga polaca, o Nazismo alemão e, claro, o movimento italiano, entre outros. Apenas os regimes fundados por um movimento deste género poderiam com propriedade ser chamados de fascistas.
No geral, tem predominado na investigação internacional (não só anglo-saxónica) a ideia de que as ditaduras do entre guerras se dividem entre os muitos regimes conservadores (Salazar, Dollfuss, Metaxas, Smetona, Tiso, Ulmanis, Horthy, etc) e os dois regimes fascistas da Itália e da Alemanha, embora as abordagens utilizadas possam variar. Assim, para Roger Griffin, que define o fascismo como “ultranacionalismo palingenético”, o regime português seria um exemplo de “para-fascismo”, que o autor parece descrever (pelo menos no seu primeiro livro, de 1991) como um “falso fascismo”, ou seja, um fenómeno político fundamentalmente conservador que, sem incluir o mesmo radicalismo na construção de uma “nova nação” e de uma modernidade alternativa, adota algumas roupagens fascistas. Já para Robert Paxton, seria a aliança entre as elites conservadoras e o movimento fascista, bem como as tensões que dessa aliança fariam parte, que serviriam para identificar os regimes fascistas. Stanley Payne, por sua vez, utiliza uma tipologia que distingue entre o autoritarismo conservador, a direita radical e o fascismo propriamente dito, inserindo-se o regime português na primeira opção (um regime cuja rutura com as instituições tradicionais não é tão radical quanto a de outras variantes da direita e que se baseia nas elites tradicionais, ao mesmo tempo que rejeita a política de massas).
Michael Mann apresentou também a sua tipologia, menos influente, composta pelos regimes semi-autoritários, autoritários semi-reaccionários, corporativos, e os fascistas propriamente ditos. Apesar de este autor admitir que as fronteiras entre os tipos de regimes são ambíguas, acaba por colocar na categoria dos fascistas apenas os dois suspeitos do costume. Também autores marxistas (Poulantzas, Vajda, o trotskysta Dave Renton, etc), desenvolvendo teorias mais subtis do que as que foram dominantes na era “estalinista”, identificaram a ditadura alemã e italiana como as únicas “estritamente fascistas”, pois foi só nelas que, numa fase inicial, a pequena-burguesia tentou dirigir o estado capitalista num momento de crise entre as classes dominantes, mas acabando apenas por restaurar a hegemonia da burguesia, agora com a preponderância do capital monopolista (tese de Poulantzas). Para alguns destes autores, a mobilização pequeno-burguesa seria uma das componentes que distinguiria o fascismo de outras formas de reação anti-proletária. Importa igualmente referir que, entre os anos 80 e a primeira década do século XX, foram caindo um pouco em desuso expressões como “fascismo conservador”, “fascism from above”, ou “fascismo clerical” (esta última ainda é por vezes usada). Provavelmente, boa parte dos autores terá concluído que estas expressões indicavam que os regimes conservadores a que se referiam não eram fascismo “genuíno” ou que, no máximo, remeteriam para uma vertente fascista que se diluía noutras vertentes mais importantes.
As abordagens mais recentes e o conceito de hibridização
Nos últimos anos, contudo, novas abordagens têm vindo a tornar-se predominantes, focando a sua atenção, por exemplo, na transferência transnacional de modelos e ideias políticas. Michel Dobry também sugeriu que se abandonasse a “obsessão” com as classificações, propondo que se estude a direita do entre guerras levando em conta o dinamismo, as influências mútuas entre as diversas organizações e regimes, as perceções dos contemporâneos, etc. No limite, esta abordagem implica que deixe de fazer sentido discutir sequer o que é ou não é fascista. David D. Roberts, em parte baseado nestes pressupostos, escreveu o seu “Fascist Interactions” com o objetivo de avaliar os resultados das interações entre fascistas e conservadores, não indo ao ponto, contudo, de negar que houvesse distinções entre os dois (outro exemplo é a historia do fascismo francês escrita por Chris Millington, que procura narrar a evolução das organizações sem se preocupar muito com classificações). Ainda que pessoalmente rejeitando as implicações das propostas de Dobry, que nos levariam a abandonar por completo tipologias que são úteis para o investigador compreender a realidade política de então, aceito que a sua reflexão nos ajuda a compreender que as distinções entre as diversas variantes da direita não seriam tão vincadas quanto a historiografia tradicional tende a pensar e que as influências fascistas junto dos conservadores (e vice-versa) devem ser levadas mais a sério. É, pois, possível falar de uma complexa rede de influências mútuas e mesmo de uma “hibridização”, conceito utilizado sobretudo por Aristotle Kallis, um dos autores que mais tem defendido que os regimes geralmente rotulados de conservadores sejam incluídos, de uma maneira ou de outra, no universo do fascismo, e que inicialmente chegou a sugerir que o “para-fascismo” fosse visto como uma “genuína” manifestação de fascismo, só que menos radical.
Levando isto em conta, pode dizer-se que, por razões que não tenho espaço para explicar, ocorreu, no seio dos regimes conservadores, uma “fascização” parcial, cuja dimensão divergiu de país para país (arrisco hoje dizer, sem certezas, que onde ela foi maior foi na Roménia de Antonescu, a partir de 1941) e que levou ao surgimento de um “conservadorismo fascizante” (expressão usada por vários autores portugueses). No caso português, ela teve lugar sobretudo na segunda metade dos anos 30 com a criação da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa. É precisamente por estar convicto de que essa “fascização” dos regimes foi parcial que prefiro adotar a expressão anteriormente referida à de “fascismo conservador”, que é recuperada por Fernando Rosas e Manuel Loff. Julgo, pois, que “conservadorismo fascizante” é uma classificação feliz para expressar o dinamismo e os processos de hibridização ideológica, que permitiram que os regimes conservadores se aproximassem dos fascistas, ao mesmo tempo salvaguardando a noção de que estes últimos eram diferentes, pois teriam uma evolução e caraterísticas estruturais e ideológicas distintas. Apesar da sua “fascização” parcial e porventura temporária, os regimes conservadores continuavam a ser, no fundamental, isso mesmo: conservadores. Neles, as classes e instituições tradicionais não precisavam de partilhar o poder com os líderes de um movimento de cunho “popular” que pretendiam criar ou mesmo representar as “novas” elites “heroicas” (devo dizer, contudo, que me parece acertada a classificação distinta de “quasi-fascista” pelo menos para os primeiros anos do regime de Franco, para o breve Estado Nacional-Legionário romeno de 1940 e porventura para a fase final de Vichy e mais um ou outro regime …ainda estou indeciso quanto ao que pensar do regime Ustashe da Croácia; e o regime do fascista húngaro Szálasi Ferenc foi demasiado curto e limitado para ser seriamente encarado como candidato a qualquer classificação que seja, além da de sanguinário). Apesar de tudo isto, e ainda que de forma muito diferente da dos regimes italiano e alemão, os regimes conservadores da época, como os de Salazar e outros, fazem também parte da história do fascismo e as abordagens transnacionais e relacionais ajudam-nos a compreender melhor os diferentes casos de “fascização”.
Conclusão
Remato dizendo que o meu livro é o resultado de uma investigação de quase dez anos que me levou a estudar afincadamente a história do fascismo, não por qualquer simpatia ideológica, mas para tentar compreender o que caraterizou este fenómeno político infame. Esta investigação levou-me a ler sobre personalidades pouco conhecidas que vão de Gustavs Celmiņš da Letónia a Nakano Seigo do Japão e Adrien Arcand do Canadá, e, entre outras coisas, a viajar até França em busca de textos de Jacques Doriot, Marcel Bucard e Marcel Déat. O livro que agora apresento ao grande público, que fala sobre muitíssimo mais do que a classificação do regime de Salazar (aliás, no livro eu nem abordo algumas das coisas que digo neste texto), e no qual os especialistas (assim o temo) nada encontrarão de novo, resulta da minha convicção de que o conhecimento académico não pode ser apenas partilhado num circulo restrito de investigadores. Aceitarei críticas que chamem a atenção para interpretações ou afirmações erradas (não alego ter um conhecimento detalhado de todas as realidades nacionais que abordo) ou para momentos do livro em que, inadvertidamente, possa ter apresentado estas ideologias de uma forma mais “suave” do que elas merecem (terei todo o gosto em reformular numa eventual reedição, se as críticas fizerem sentido). Não aceito que julguem que sou motivado pela ignorância ou por ideologias que não perfilho. NOTA FINAL: chamaram-me a atenção para algo de estranho que teria dito na entrevista ao DN, pois aparentemente teria classificado o regime de Putin como fascista. Contudo, nunca lhe atribuo verdadeiramente esta classificação. O que quis dizer na entrevista é que se trata de um regime fundamentalmente conservador que adota aspetos “fascizantes”, e que é talvez o regime com maior tendência para inserir elementos “fascizantes” dentre os que surgiram nas últimas décadas. Na linguagem de Roger Griffin, isto seria um “para-fascismo” (expressão que, ao que julgo, o próprio já terá utilizado para o regime). De resto, este autor terá sugerido, num capítulo que escreveu para um livro de António Costa Pinto e Aristotle Kallis, que via agora o “para-fascismo” como um tipo de fenómeno político por direito próprio e já não como uma mera imitação falsificada do “verdadeiro” fascismo.
Texto publicado no DN, publicado no SF com autorização do autor