VIVEMOS EM DEMOCRACIA? QUAL É O NOSSO FUTURO?

IV – A questão dos plásticos
Por Filipe do Carmo

Dei alguma atenção, no texto precedente, às consequências da acumulação de lixos para o ambiente (muito em particular no relativo aos plásticos) e também, dando uma especial atenção à necessidade de controlar as emissões de GEE (gases com efeitos de estufa), assim como às dificuldades que existem em implementar medidas que conduzam a um controlo efectivo. Referi então que as correspondentes iniciativas teriam que assumir contornos mundiais e levar a processos que passassem no mínimo por acordos do tipo dos existentes nas actuais COPs (coordenados pela ONU e garantidos pela aplicação de penalizações a aplicar aos não cumpridores). Ora esse mínimo parecia estar a ser contestado, no sentido de necessitar de ser superado, nas vésperas da inauguração da cimeira sobre a poluição plástica que teve lugar em Paris de 29 de Maio e decorreu até 2 do corrente mês de Junho[1].
De facto, não só se via a necessidade de os Estados contribuírem significativamente para a criação de um fundo especial (complementado por taxas a aplicar aos industriais de acordo com o princípio do poluidor-pagador) como se considerava indispensável a fixação de níveis de obrigatoriedade[2].
Os textos referidos de Stéphane Mandard, que transmitem a percepção de que a actual situação de poluição pelo plástico é equivalente a uma “bombe à retardement”, apresentam também as perspectivas existentes, sobretudo entre muitos dos cientistas e outros participantes da cimeira, de que o acordo que dela resultar venha a impor que “os Estados tenham em conta todo o ciclo de vida dos plásticos, desde a extração de combustíveis fósseis até à eliminação de resíduos e não apenas a sua gestão”. A referida percepção – que é também transmitida pelos textos referidos de Stéphane Mandard – deriva fundamentalmente de que a prossecução do actual despejo de resíduos de plástico representa um enorme perigo para o ambiente, a saúde e o clima.
Aliás, a geração actual de 350 milhões de toneladas anuais de tais resíduos em todo o planeta tenderá a triplicar até 2060, segundo as previsões do PNUA (Programa das Nações Unidas para o Ambiente).
Desses 350 milhões (cerca de 80% do total da produção, o qual, segundo a OCDE, é de cerca de 460 milhões), 50% é depositada em aterros, 19% é incinerada e só 9% é reciclada. Os restantes 22% “passeiam-se” pela atmosfera, pelos solos e pelos meios aquáticos sob a forma de macroplásticos (88%) e de micro e nano plásticos (inferiores a 5 mm e a 1 micrograma, respectivamente). De tudo isto advirão, inevitavelmente, não só enormes perigos para a biodiversidade mas mesmo um forte contributo para o aquecimento global (o qual tem tido um máximo de atenção, entre as questões ambientais, nos últimos anos) dado não só o facto de que a produção de plásticos requer a extracção e a transformação de energias fósseis, mas também o crescente aumento da incineração dos respectivos resíduos.[3]

A Terra coberta de plástico
Por outro lado, não obstante a inquietação que os números acima – que levaram a que a acumulação total de resíduos plásticos à superfície da Terra tenha já atingido, desde os anos 50, mais de 8 mil milhões de toneladas (como se a superfície do planeta estivesse integralmente coberta por uma película de meio centímetro de plástico) – só por si já causam nos domínios já referidos, há ainda que ter em consideração os efeitos sobre a saúde, os quais poderão começar por ser conjecturados quando se sabe que as estimativas actuais de ingestão individual de microplásticos apontam para 5 gramas semanais (o equivalente a um cartão bancário).
Ora, tendo já sido identificados nos plásticos mais de 13 mil diferentes produtos químicos, sabe-se que em cerca de metade deles há dados toxicológicos que apontam para que em 3,2 milhares haja substâncias altamente preocupantes (faltando saber o que acontece com a outra metade). E daí problemas cancerígenos, perturbações do sistema endócrino, nascimentos prematuros, infertilidade, obesidade, doenças cardiovasculares, …
Todos estes problemas levam o PNUA a propor uma mudança de sistema que promova o desenvolvimento sustentável e passe pela promoção da economia circular (a reciclagem). Mas esta é uma via contestada pelas organizações ambientalistas e por cientistas, os quais advogam uma solução que comece pela redução drástica do recurso ao plástico. Por seu lado, os defensores da economia circular dizem que já há tecnologia para tal solução, apresentando como argumento o caso do México, onde a taxa de reciclagem subiu de 9% em 2002 para 56% em 2018 (apesar de actualmente, em termos mundiais, não se ter chegado ainda à reciclagem de 10% de resíduos).[4] Já noutro caso, extremamente problemático em termos de plásticos, na Índia, afectada em particular por uma acumulação brutal de resíduos (num caso, com 45 metros de altura), procura-se “valorizá-los” com a sua transformação em energia ou uma reconversão em materiais para construir estradas. Nesse país – onde a combinação de calor tórrido e de metano provocam fumos tóxicos agravando uma poluição que já era uma das mais elevadas no mundo; onde as vacas ingerem plástico contendo restos alimentares dado não conseguirem abrir os sacos; onde os cães vomitam o plástico que engolem; onde os humanos veem os plásticos a impedi-los de frequentar as praias, os rios e os lagos – o governo procurou fazer face ao problema tornando os produtores responsáveis pela recolha e reciclagem no termo do ciclo de vida útil dos plásticos, mas com um sucesso (em que avulta as referidas transformação em energia e reconversão para as estradas) muito limitado.[5]


Em Portugal
No nosso país, sem aparentar chegar aos extremos referidos para a Índia, os problemas com os plásticos também são delicados. Muitos pensaram que a separação do lixo (que passou a ser obrigatória já há algum tempo) em “indiferenciado”, “plásticos e metais” e “papel e cartão”, com vista a adequada recolha, tratamento e reciclagem, constituiria um passo importante. O que teve sequência com a aprovação pelo Governo, em Março do corrente ano, do PERSU (Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos 2030), o qual inclui um documento em que se diz que o objectivo desejado para 2030 em termos de “preparação para reutilização e reciclagem” é chegar a 60% de reciclagem. Sendo esta, contudo, uma meta que o próprio ministro do Ambiente e Acção Climática considera difícil de atingir. Consideração essa que parece apoiar-se no facto de, em 2019, a reciclagem de resíduos não ter passado de 13% (valor em princípio resultante de uma métrica exigente, o qual contrasta com valores, também mencionados no documento, de recuperação de 42% do lixo produzido, sendo esta uma percentagem anunciada pela Agência Portuguesa do Ambiente e pelas associações de produtores de embalagens; isso parece significar que a indústria produtora de embalagens está a declarar apenas uma pequena parte do lixo realmente existente). Face aos termos utilizados pelo artigo[6] que foi consultado para as actuais considerações, a diferença nos valores das percentagens pode derivar de, por exemplo, num caso se considerar plástico e noutro esse e outros lixos. Esse mesmo artigo dá outras referências que é conveniente ter presentes no respeitante aos destinos que são dados aos resíduos de plástico (como garrafas, sacos e embalagens de utilização única): alguns, com origem em várias partes da Europa, vão dar, através do mar, à Noruega; outros, exportados da Alemanha para a Grécia, são objecto de tentativas de importação pela Turquia, país que deseja enviá-los para o Vietname; noutro caso em que os plásticos têm origem em Portugal e são exportados para a Espanha, este país poderá ainda vendê-los para outra área (carga que, no caminho, pode ser apanhada por uma lucrativa “máfia do lixo”, que as retira da vista e das estatísticas oficiais). O conjunto de dados que são transmitidos pelo artigo vai, no entanto, muito mais longe, descrevendo a existência de numerosas práticas criminosas relativas a tais transportes de resíduos face às quais não só as legislações europeia e nacionais (permissivas para os infractores) são francamente insuficientes como as práticas de inspecção existentes sofrem de falta de pessoal adequado. Mas relativamente a desenvolvimentos relativos a estes e outros detalhes fico por aqui, lembrando aos interessados o interesse em consultar os dois artigos referidos.
Estas questões e outras de natureza ambiental tendem, conforme já tem sido referido, a agravar-se no futuro e necessitam de ser vistas também em perspectivas que as associem aos impactos que o crescimento demográfico não deixará de exercer. E também apreciadas em função das decisões tomadas (ou não tomadas) pela cimeira acima referida sobre a poluição plástica de Paris que terminou em 2 do corrente mês de Junho. É algo que será abordado no próximo texto.
Algarve, 9 de Junho de 2023
Filipe do Carmo
[1] Estava prevista a presença na cimeira de negociadores de 175 países e de mais de 1500 cientistas e representantes da sociedade civil e da indústria. Ver a tal propósito dois artigos publicados no Le Monde de 2023-05-30 da autoria de Stéphane Mandard: “Pollution plastique: les enjeux d’un sommet crucial”, págs. 6-7, e “Un danger global pour l’environnement, la santé et le climat”, pág. 6.
[2] Diversamente do que tem sido habitual nas COPs em que o que tem preponderado são meras promessas. Tal como continuam a pretender os EUA, país que, sendo primeiro consumidor de plásticos, se opõe a obrigações de carácter global, defendendo “compromissos voluntários” do tipo dos do Acordo de Paris sobre o clima. Isso enquanto os países produtores de petróleo e de gás, não aceitando limitações à produção de plásticos, continuam a investir fortemente nessa área, e a China, o primeiro dos seus produtores, pretende que o Tratado que sair da referida cimeira reconheça o “papel fundamental dos plásticos para a sociedade e para a economia”.
[3] Stéphane Mandard faz também referências a custos sociais e ambientais associados às poluições pelos plásticos (doenças, emissões de GEE, perdas de biodiversidade e limpeza dos oceanos) que, segundo diferentes estimativas, poderão ir de 300 a 600 mil milhões de dólares/ano na escala planetária a 1,5 milhões de milhões (neste caso só no respeitante aos impactos nos sistemas de saúde: doenças, dias de trabalho perdidos, …). Valores naturalmente bastante preocupantes, mas cuja avaliação nos tempos que correm exigiria conhecer os critérios utilizados nos cálculos.
[4] Ver outro texto de Stéphane Mandard, “L’ONU appelle à «fermer le robinet» de la pollution plastique”, Le Monde, 2023-05-17.
[5] De acordo com o que é referido por Carole Dieterich em “L’Inde empoisonné par le plastique” (Le Monde, 2023-05-30, pág. 7).
[6] Ver “O labirinto de plástico”, texto de autoria de Paulo Pena (Investigate Europe) publicado no Público (P2) (2023-05-14, págs. 4-8). Ver também outro texto do mesmo autor (“Números de plásticos: quem paga a factura?”) no mesmo jornal e mesmo dia, págs. 8-9.
