8 de Outubro, 2024

As desigualdades criadas entre classes e regiões ao longo de mais de duas últimas décadas mantêm um nível muito elevado

DOSSIER – Eleições nos EUA

Por Francisco Melro

O discurso de Kamala contra Trump em defesa das liberdades, contra o ódio e o racismo ultra-reaccionários, pró-fascistas notórios e alarves, está a revelar-se insuficiente para assegurar a vitória dos democratas. A divisão de meio por meio subsiste no conjunto do País, incluindo em Estados historicamente industrializados onde os democratas sempre ganharam.

As políticas de Reagan e mais acentuadamente a globalização criaram uma enorme clivagem social na América, com as classes de menores rendimentos em perda continuada, em termos relativos e em termos reais, de poder de compra. As classes e regiões que mais sofreram pela perda de empregos, de rendimentos e de retrocesso geral de bem-estar têm associado a fonte dos seus problemas aos democratas que governaram a América no período da globalização, aos Clinton e aos Obamas e ao seu convívio com as elites dos grandes centros que mais lucraram com os novos rumos da América. Esta situação foi ligeiramente corrigida entre 2015 e 2020 mas a pandemia gerou um novo retrocesso nesta tendência. Por puro azar dos Távoras, este pequeno período de correcção da situação coincidiu com a Administração Trump e o da pandemia com a Administração Biden.

Será por isso que, nas sondagens de opinião, os americanos persistem em dizer que Trump é mais competente do que os democratas na gestão económica?

A economia americana recuperou na pós-pandemia, criando empregos e controlando a inflação, mas os preços que a inflação fez subir persistem em níveis muito elevados, penalizando sobretudo o poder de compra dos rendimentos das classes mais baixas. Os dados censitários referentes aos anos de 2022 e de 2023 revelam uma melhoria dos rendimentos reais das classes mais baixas, retomando estes o nível de  2020, acima já do nível alcançado em 2000, o que significa que as medidas de Biden para combater os efeitos recessivos e inflacionistas da pandemia começam a dar frutos. É provável que esta tendência de melhoria esteja a continuar em 2024, tendo em conta a continuação da evolução positiva do emprego e dos salários reais durante o corrente ano.

Mas as desigualdades criadas entre classes e regiões ao longo de mais de duas últimas décadas mantêm um nível muito elevado, próximo dos países menos desenvolvidos, atenuando o impacto social destas recentes melhorias económicas da Administração Biden.

É neste estado da economia e da realidade social que os americanos vão a eleições, com o risco sério de um pró-fascista ganhar as eleições.

Apresento em baixo alguns gráficos (dados de base oficiais dos Estados Unidos, US Census Bureau) que expressam as clivagens sociais existentes na América. Só existem publicados dados oficiais até 2023.

O primeiro gráfico representa o rácio entre o rendimento médio dos 40% de maiores rendimentos e o rendimento médio dos 40% de menores rendimentos. Passou de 4,4 vezes no final da década de 60 para 5,2 vezes no início da década de 90, situando-se em 6,5 vezes em 2023, um nível similar ao de antes da pandemia.

Estas disparidades tornam-se mais expressivas quando comparamos os rendimentos mais elevados com os rendimentos mais baixos.  O rendimento médio dos 20% de maiores rendimentos era no início da década de 70 cerca de 10,2 vezes o do rendimento médio dos 20% de menores rendimentos, disparando para 16,8 vezes no final de 2023. O rendimento médio dos 5% mais ricos passou, no mesmo período, de 15,6 vezes para 29,8 vezes do rendimento médio dos 20% de menores rendimentos.

Poderia ter acontecido que, apesar de não terem acompanhado o crescimento dos rendimentos dos mais ricos, os rendimentos dos mais pobres também tivessem crescido, embora menos. Ora tal só aconteceu até ao início da globalização e entre 2015 e 2020, ou seja, neste último período, durante a governação Trump.

Em termos reais, usando dólares de 2023 para calcular os rendimentos de cada ano, os rendimentos médios mais baixos, 20% mais baixos (lowest fifth no gráfico em baixo), caem de um índice de 100 em 2000 para apenas 86,5% em 2014 e apesar da recuperação posterior, situavam-se ainda num índice de 104,2 em 2023, tendo sido os mais penalizados pelo período da pandemia. Note-se que tanto o quintil dos rendimentos médios entre os 20% e 40% (second fifth no gráfico em baixo), como o quintil dos rendimentos médios entre os 40% e os 60% (middle fifth no gráfico em baixo) sofreram também importantes quebras reais entre 2000 e 2015, embora menos acentuadas do que os dos baixos rendimentos, mas que recuperaram  posteriormente até ao final de 2023 para níveis  reais superiores aos de 2000.

Leituras distintas podem ser tiradas para a evolução dos rendimentos reais, dólares constantes de 2023 para cada ano, para as classes de maiores rendimentos, rendimentos médios entre os dos 60% e os dos 80% (fourth fifth no gráfico), rendimentos entre os dos 80% e os dos 100% (highest fifth)  e os do top 5 per cent que mantiveram rendimentos médios reais relativamente estáveis entre 2000 e 2014 mas que subiram sensivelmente até ao final de 2023 para níveis reais bastante superiores aos de 2000.

O índice  de Gini (que varia entre 0 e 1, em que 0 identifica uma distribuição igualitária e 1 identifica uma desigualdade extrema) quando aplicado ao cálculo das desigualdades na distribuição do rendimento das famílias dos EUA (cálculos oficiais americanos, US Census Bureau) revela uma subida significativa acentuada, atingindo nos últimos anos níveis similares aos verificados em sociedades menos desenvolvidas, por exemplo, da América Latina. A pandemia agravou as desigualdades, com um índice historicamente alto em 2021, e a ligeira correcção pós-pandémica manteve esse índice num nível muito elevado.

Esta ligeira correcção das desigualdades estará a continuar em 2024, dada a evolução positiva entretanto registada pelo emprego e pelos salários reais nos EUA. O emprego não agrícola subiu significativamente até ao final de Agosto de 2024, enquanto a taxa de desemprego estabilizava em torno de 4,5% no final de Agosto.

Entretanto os salários horários no sector privado dos USA voltaram a subir mais do que a inflação a partir do início de 2022, mantendo este comportamento até Agosto de 2024, última informação disponível.

Francisco Melro – Economista

Editor

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