As Eleições que não vão mudar o mundo
As eleições presidenciais americanas fazem parte dos grandes espetáculos produzidos nos Estados Unidos com audiências planetárias
OPINIÃO – Carlos Matos Gomes
Ver os anúncios das TV sobre as reportagens das eleições nos Estados Unidos, ou os títulos dos jornais transporta-nos ao mundo da fantasia do Circo, o maior Espetáculo do Mundo, com os melhores palhaços do mundo, os melhores trapezistas do mundo. Ou ao mundo do boxe, o Combate do Século, Cassius Clay contra Joe Frazier (Madison Square, 8 Março de 1971). Agora temos Trump contra Kamala (Washington, 5 Novembro 2024)!
Algumas citações ajudam a situar o espetáculo das eleições presidenciais norte-americanas na sua circunstância, como o resultado de um processo civilizacional. Em A Sociedade do Espetáculo, publicado em 1967, Guy Debord, o autor, escrevia: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção é uma imensa acumulação de espetáculos.”
O espetáculo, incluindo o político, substituiu as religiões como meio de conduzir povos — de os unificar como um rebanho. Esta substituição já tinha sido detectada por Ludwig Feurbach, um filósofo alemão do século XIX, em Essência do Cristianismo, onde escreveu: “O nosso tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à sociedade, a aparência ao ser. À medida que decresce a verdade a ilusão aumenta.”
Os elementos mais relevantes destas eleições para presidente dos Estados Unidos não dizem respeito a qualquer alteração radical nem na vida dos norte-americanos, que continuarão sem um sistema de saúde e um sistema de proteção social públicos, a viver com más infraestruturas básicas, transportes, eletricidade, habitação, sem ordenamento do território (o que nem os resultados das tempestades tem alterado), a não ter qualquer intervenção na definição das guerras e dos negócios que elas proporcionam, a estarem sujeitos a lóbis poderosos como o do American-Israel Public Affair Commitee (AIPAC), que determina a política dos Estados Unidos e que impôs que desde 1946 até hoje, ano fiscal de 2024, estes tivessem apoiado Israel com 310 biliões de dólares (bilião=mil milhões, preços correntes de 2022), enquanto no mesmo período o Egito, o segundo país mais beneficiado recebeu 165 biliões, o Afeganistão 160 biliões, o Vietname do Sul 148 biliões e a Ucrânia, o quinto país mais beneficiado, 120 biliões[1].
Estas eleições não alterarão as parcelas do orçamento destinadas ao complexo militar-industrial, nem a imposição de verdades únicas através das indústrias do infoentretainment , das igrejas evangélicas e dos gigantes das redes e bases de dados, a Google, a Microsoft, a Meta.
Para o Ocidente Global, a importância das eleições norte-americanas diz respeito ao modo como os Estados Unidos vão agir num mundo onde estão a perder a supremacia e a confrontar-se com novos polos de poder, caso dos BRICS e com a desdolarização. O que é um assunto para ser dirimido pelo lóbi financeiro, do qual os presidentes são meros instrumentos. Para o resto do mundo os Estados Unidos vão manter os seus conhecidos e assumidos objetivos estratégicos permanentes e apenas serão detidos ou pela força ou pela criação de alternativas que permitam dispensar a sua “proteção” ou paralisar a sua ação.
Os animadores do espetáculo anunciam golpes espetaculares na guerra na Ucrânia e no Médio Oriente. Não se vislumbram quais. Na Ucrânia, a Rússia já definiu o futuro: uma Ucrânia neutral. No Médio Oriente os Estados Unidos não podem fazer mais do que fizeram, fornecerem a Israel os meios para eliminar os palestinianos. O trabalho do novo presidente vai ser o restabelecimento de laços proveitosos com as monarquias do petróleo, agora renitentes em surgirem ao lado dos americanos cúmplices e patrocinadores de um genocídio cometido sob os seus turbantes e barbas. Dispõem agora dos BRICS, uma alternativa que lhes alivia o laço de dependência dos Estados Unidos.
No próximo fim de semana o mundo não vai estar diferente. Nem em Janeiro de 2025. O único elemento excitante seria proporcionado por uma derrota de Trump, que este não aceitaria. Mas assaltar edifícios do governo e provocar tumultos são números já vistos e que até tiveram uma versão tropical em Brasília.
O elemento degradante será o da eleição de um ser grotesco para presidente. Mas a eleição de um ser como Trump é um revelador da sociedade do espetáculo em que se transformou a sociedade americana. E essa transformação é fruto de uma ideologia em que o ser foi substituído pelo ter e pelo parecer, onde o indivíduo vale o que valer o seu poder de transmitir uma imagem. No caso, uma imagem de sucesso, não importa com que meios. Uma ideologia transmitida através de um discurso ininterrupto, reduzido, como é patente no caso de Trump a um monólogo autoelogioso, recitado como uma lengalenga de um vendedor de bugigangas.
As eleições presidenciais americanas fazem parte dos grandes espetáculos produzidos nos Estados Unidos com audiências planetárias, a par da cerimónia dos Óscares, ou da Superbowl, o jogo da final do futebol americano. Estes grandes espetáculos transformam em mercadoria a “solidão das multidões”, o isolamento dos indivíduos. Veiculam a ideologia da alienação que destrói o sentido crítico e promove a quebra dos laços sociais, que reduz o papel social dos indivíduos à escolha para salvador da figura mais aberrante do mercado. Nada de novo. Um comportamento idêntico ao dos povos que desde a antiguidade e em todo o planeta criaram e adoraram deuses-polvo, ou jacaré, ou elefante, ou uma hidra de sete cabeças, ou uma serpente, como Tiamat, da Mesopotâmia. Deuses bêbados, violadores, assassinos. Há para todos os gostos. A novidade é que na civilização do mercado e dos videojogos os monstros podem aparecer como heróis a fazer campanha para serem adorados e os fiéis votam neles dispostos a receber uma recompensa virtual.
Quer ganhe Trump, ou Kamala, os satélites da Starlink de Elon Musk continuarão a debitar dados aos serviços de informações da Ucrânia e de Israel para estes referenciarem alvos, as 865 bases militares americanas continuarão nos 130 países onde se encontram cerca de 350 mil soldados e os mais sofisticados armamentos. O ouro continuará a valorizar-se. A bolsa de Wall Street continuará a determinar o que cada um de nós pode comprar com o dinheiro que recebe. A Europa, com UE e NATO, continuará desaparecida.
Aos cidadãos em geral resta o extraordinário exemplo da força dos movimentos populares dos espanhóis da martirizada região de Valência. Abandonados à sua sorte pelas autoridades que os devia ter avisado a tempo da aproximação da tormenta e por quem os devia ajudar a sobreviver, uniram as suas forças, organizaram-se por si próprios e viraram as costas, por vezes com insultos de raiva, àqueles que lhes haviam pedido o seu voto e não o souberam merecer.
[1] Dados recolhidos NO ARTIGO