10 de Fevereiro, 2025

DOSSIÊ AMBIENTE | A AGRESSÃO AO PLANETA

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AMBIENTE E ECONOMIA | DOSSIÊ – Parte 7

A AGRESSÃO AO PLANETA (VII)

Em 1974, René Dumont, no seu artigo “La dilapidation mortelle des ressources”[1], dizia que o “Crescei e multiplicai-vos” já causou danos suficientes, pois actua de modo impiedoso desde há mais de dois milénios.

Tendo-se candidatado à presidência da República Francesa nesse mesmo ano com um programa ecologista, Dumont apenas conseguiu 1,32% dos votos. Os resultados das nossas recentes eleições legislativas, revelando falta de preocupação ambiental por parte da maioria dos partidos políticos (o tema predominante nos debates continuou a ser o crescimento económico), confirmaram tal falta de preocupação: os dois únicos pequenos partidos (sem representação parlamentar) que foram claros a expressar tal preocupação apenas conseguiram um apoio (0,23% dos votos) bastante mais baixo que o de Dumont.

 O querer sempre mais e mais parece fazer claramente parte da natureza humana, e isso está bem evidenciado no que respeita aos mais abastados conforme se pode inferir de um dos textos que antecedem o actual. No que concerne os mais pobres, sobretudo os que lutam pela sobrevivência, as preocupações com as idades mais avançadas têm-nos conduzido a procurar garantir uma descendência que lhes permita fazer face às necessidades mais básicas, o que estará em grande medida por detrás da sua adesão ao “Crescei e multiplicai-vos”. Contudo, a evolução mais recente das sociedades humanas, com a conjugação de uma mais baixa mortalidade com o desenvolvimento de um sistema educativo que vai no sentido de incentivar um investimento num número limitado de filhos e a utilização de meios contraceptivos, tem levado a uma diminuição dos nascimentos que permite antever um termo ao processo de crescimento que temos conhecido. Mas esse termo ainda está a uma distância considerável, conforme já referido anteriormente, e haverá, pelo menos até meados deste século, que lidar não só com os graves problemas que já existem de aquecimento global, de progressiva exaustão de recursos naturais e de poluições de muitas naturezas, mas também com os acrescentos a que mais desenvolvimento económico conduzirá, incluindo o que as tecnologias que se pretendem verdes virão a ocasionar. Situação que só se poderá agravar com o crescimento demográfico que ainda se prevê.

Há dois tipos de evolução que poderão ser determinantes até, diga-se com uma ousadia algo desconfortável, cerca de 2050 (ir além de um horizonte de 30 anos é jogar demasiado com as capacidades de previsão). O primeiro desses tipos de evolução tem a ver com os desastres ambientais que poderão ocorrer e de que já se conhecem algumas “amostras” em anos recentes: temperaturas elevadíssimas, incêndios, destruições de edificações (não só habitacionais como industriais e outras) e de florestas e campos agrícolas, mortos e feridos. O sistema económico dos países desenvolvidos tem, até agora, permitido limitar em grande medida a sentimentos de desolação as consequências dos desastres ocorridos. Isso devido não só à capacidade de reconstrução rápida de que o sistema económico tem dado provas, mas também à existência de um subsistema segurador (por vezes complementado por fundos públicos), o qual permite financiar partes substanciais de tal reconstrução. Mas, se os desastres em tais domínios se agravarem e essa capacidade de reconstrução começar a falhar, o que sucederá? E se outros tipos de desastres (subida das águas do mar devido ao degelo, doenças causadas pelas poluições, redução da capacidade de produzir alimentos) vierem a ocorrer? O segundo dos referidos tipos de evolução tem a ver com o próprio crescimento populacional e começa por afectar países em que não é criado um travão a tal crescimento. Conforme já referido (ver Anexo Populações), a população mundial, que actualmente é de cerca de 7,8 mil milhões, poderá atingir em 2100 (de acordo com as previsões da ONU) cerca de 3 mil milhões adicionais. Previsões de outro organismo colocam o pico populacional bastante antes, em 2064, embora com valores inferiores: 9,7 mil milhões. Considerando um ou outro caso e a hipótese admitida de que os efeitos da adopção de medidas no sentido da redução do número de nascimentos por mulher ainda não terão atingido o seu pleno em 2050, poder-se-á esperar que nessa data a população mundial seja um pouco superior a 9 mil milhões. Sabendo que a pegada ambiental da actual população já ultrapassa de longe a capacidade do planeta, o que se pode esperar como consequências em termos de desastres adicionais que nos venham a afectar? Ou será que tais desastres, directamente ou por vias que deles dependam (doenças, movimentos de populações, revoltas, guerras), virão entretanto a afectar tal evolução demográfica para valores mais baixos?

Dada a insistência sem repouso na promoção do crescimento económico (veja-se, entre nós, o que a generalidade dos partidos políticos propôs nos debates que tiveram lugar visando as eleições legislativas) não é de esperar que em breve surjam soluções políticas que procurem incentivar uma qualquer via no sentido do decrescimento. E os partidos contam com a preocupação da maioria dos eleitores com os seus interesses imediatos, naturalmente os de curto/médio prazo, para não dar a atenção necessária a outros interesses que não se lhes apresentam como urgentes, não obstante poderem vir a revelar-se essenciais à sobrevivência da sua espécie: a humana. A prossecução de um ideal de decrescimento ter-se-ia certamente que começar por se apoiar na sobriedade e isso só ganharia consistência se, como factor de arranque, fossem postos em causa não só os rendimentos excessivos dos estratos sociais mais abastados mas também os seus patrimónios avultadíssimos. Mas sobriedade, para aqueles, de entre os estratos mais baixos, que se defrontam com problemas de subsistência ou outros que conduzem a uma qualidade de vida muitas vezes deplorável? Seria necessário encontrar vias que, reestruturando os sistemas de produção e de distribuição, conduzissem a reduções significativas da produção global e a melhorias das condições de vida dos mais pobres.

O que seria necessário para atingir tal desiderato? Podemos admitir que um país isolado que viesse a optar por tal via (na sequência de uma revolução, por exemplo, ou de eleições que dessem vantagem a um partido ou coligação que defendessem tal orientação) começasse por ter algum sucesso. Mas um só país que não tenha um lugar de topo na hierarquia das comunidades humanas só poderá aspirar a que um tal sucesso não conduza a boicote, a acções de sabotagem (chegando a apoios ou mesmo à organização de um golpe de estado), por parte de grandes potências que não deixariam de o considerar como um “mau exemplo” (podendo sentir-se além disso prejudicadas nos seus interesses económicos). Por outro lado, uma iniciativa dessas por parte de uma grande potência ou comunidade supranacional não é concebível, pelo menos no contexto em que agora vivemos, dado o controlo que os grandes interesses económicos aí exercem sobre as instituições políticas.

A evolução que parece mais provável nos próximos tempos é a de um agravamento dos desastres ambientais que não se limitarão ao aquecimento global (e às suas consequências que já têm sido bem sentidas em boa parte do planeta), continuando a abranger uma grande diversidade de tipos de poluição, para além de uma incidência significativa sobre a disponibilidade de recursos que têm vindo a ser explorados. No respeitante às poluições, já foi referido, embora com pouco detalhe, o que se passa nos oceanos (para além naturalmente da que afecta a atmosfera e provoca o aquecimento global), mas não se poderá esquecer a enorme difusão de plásticos que está a inundar os terrenos, os lagos, os rios (um exemplo entre muitos é dado por uma fotografia que mostra um terreno no Bangladesh atravessado por uma ponte que está rodeada de tal material e que acaba de ser publicada no Público de 2022-01-26, página 5). No que concerne a excessiva utilização de recursos do planeta, além do que se passa com o digital e com as baterias para os automóveis eléctricos e que já foi referido em texto anterior, convirá acrescentar uma referência aos efeitos que começam a ser sentidos sobre os preços de alguns desses recursos – por exemplo, chips e outros componentes do digital, o petróleo e a electricidade – os quais têm sofrido aumentos significativos nos últimos meses (ainda não é clara a possível comparticipação que efeitos da pandemia que actualmente nos afecta têm tido nessas subidas de preços).

A insuficiência de recursos alimentares também, inevitavelmente, tem tendência a afirmar-se com maior gravidade. É que essa insuficiência, que se tem manifestado sobretudo em países menos desenvolvidos nos tempos mais recentes, vai assumir uma maior importância em países como os da África Subsariana e mesmo alguns asiáticos, à medida que o crescimento populacional que os caracteriza se vai tornando mais intenso. Se nos limitarmos a avaliar o que se poderá passar em alguns países da África Subsariana, convirá recordar-nos que (ver um dos textos anteriores) as previsões demográficas apontam para 401 milhões em 2050 na Nigéria (206 em 2020), 135 na Tanzânia (60 em 2020), 194 no Congo (90 em 2020), 66 no Níger (24 em 2020) e 77 em Angola (33 em 2020). Esta evolução é devida a uma diminuição bastante forte da mortalidade ao sul do Sara, abrangendo em particular as crianças de 0 a 5 anos (passando de 30,9% em 1950 a 7,8% actualmente) enquanto a fecundidade pouco baixou no mesmo período. Assim, segundo um estudo realizado num número considerável de países africanos na primeira década do nosso século, o número ideal de crianças declarado por mulheres casadas era em média superior a 5 (em dois casos – Chade e Níger – superior a 9). Essa é uma situação que conduz a uma utilização reduzida de contraceptivos, o que é reforçado pela atitude dos “responsáveis políticos e sanitários de tais países, que manifestam uma indiferença total a esta questão, quando não são mesmo muito favoráveis a uma forte fecundidade”.[2]

Estes fortes crescimentos populacionais em África só muito dificilmente poderão ser suportados pelos próprios países em que ocorrem, o que significa que uma parte bastante numerosa do que se poderá designar “excedentes” tenderá a recorrer à emigração para assegurar a sua sobrevivência (uma situação aliás que já se tem verificado de alguns anos para cá com consequências gravosas para tais migrantes, já bem conhecidas da opinião pública, que vão desde a acumulação de fortes contingentes em campos de concentração na Europa, ou perto das suas fronteiras, aos desastres marítimos que ocorrem no Mediterrâneo). Mas as situações que em princípio se vão viver serão bastante mais problemáticas dado que os números que se podem prever de migrantes envolvidos ultrapassarão de longe os que até agora se têm verificado. Por outro lado, as reacções que se podem esperar nos países de destino tenderão a agravar-se consideravelmente. Se por um lado a migração se apresenta como conveniente para as entidades patronais destes últimos países (mão de obra barata que vai ocupar postos de trabalho que além disso os naturais tendem a não aceitar), por outro a evolução política que aí virá a ocorrer terá grande probabilidade de se apresentar como extremamente negativa. Os movimentos populistas de extrema direita que já têm vindo a afirmar-se de há uns anos para cá verão certamente nesse afluxo de migrantes uma grande oportunidade para se reforçarem.

Numa hipótese bastante ficcional em que as populações do nosso planeta – orientadas por uma classe política que tivesse a percepção de que a actual evolução só pode desencadear um desastre planetário – compreendessem que o interesse da espécie humana teria que passar por uma redução demográfica significativa, haveria que planear com o máximo detalhe e rigor o conjunto de medidas que seria necessário adoptar para inverter a via do crescimento económico que predomina no presente e ajustar a vivência humana à disponibilidade de recursos que o planeta oferece. Ninguém sabe se essa via de inversão – num sentido que teria possivelmente que levar a quedas populacionais de 80 ou 90% para manter uma vivência aceitável e digna (e não uma espécie de retorno à Idade Média ou mesmo à Idade da Pedra) para os humanos que actualmente existem – é possível. Excluindo desenvolvimentos catastróficos (como os de guerras ou doenças altamente mortíferas) para além de toda a razoabilidade em termos de capacidade de gestão, o tempo que seria necessário a tal evolução não poderia deixar de ser extremamente longo, oferecendo oportunidades adicionais para que desastres planetários como o que acima é conjecturado ocorram. Por outro lado, a aplicação do referido conjunto de medidas defrontar-se-ia com dificuldades tremendas que se encontram para além de toda a imaginação. Basta pensar nos problemas que a gestão de cidades, de infraestruturas, de áreas industriais, construídas para alojar, servir, dar suporte económico a cerca de oito mil milhões de humanos, não deixaria de ocasionar quando confrontada com a necessidade de a ajustar a populações em forte decrescimento. Em particular, como reconverter espaços concebidos para 5 ou 10 vezes mais habitantes do que os que a humanidade que lhes sucederia necessitava. Ou como resolver os problemas de ordem económica e financeira que daí adviriam e que se afiguram como indescritíveis. Tudo isto reforça claramente o carácter ficcional da hipótese imaginada.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2022

Filipe do Carmo

Filipe do Carmo

[1] Artigo republicado recentemente (Outubro-Novembro de 2019) em La Bombe Humaine, Pression démographique sur la planète (edição do Monde Diplomatique, Manière de Voir), páginas 14-15.

[2] Ver o artigo “La famille nombreuse entrave le développement de l’Afrique”, incluído na publicação La Bombe Humaine…, referida na nota de rodapé precedente (páginas 22-25).