Tribuna SF | JRS, revisionista do nazizmo
SEM FRONTEIRAS | 8 de dezembro 2020 | Tribuna|Editado CR-SF Título e subtítulos
por Luísa Semedo*
Sois todos uns invejosos do aprazimento do escritor e tirais conclusões precipitadas a partir de uma frase de aparência miserável tirada do contexto.
Eu que não sou invejosa fui ver o contexto da entrevista da RTP a José Rodrigues dos Santos (ou J.R. dos Santos, Dallas style, como é conhecido em França) e afinal a frase é mesmo miserável porque o contexto também o é. Ao ver enfim essa e outras entrevistas lembrei-me do efeito Dunning-Kruger, da discrepância entre o nível de autoconfiança no seu saber sobre um dado assunto no início da aprendizagem e o verdadeiro nível de conhecimento.
Os segredos de JRS
JRS parece ter lido umas coisas durante uns meses sobre a matéria e ter atingido o pináculo do “monte da estupidez”, acreditando piamente saber mais do que investigadora.e.s que a esse tema dedicaram a vida (historiadora.e.s especialistas que não estão a par, não sabem dos segredos a que só ele teve acesso, ou que tiveram acesso, mas não ousam como o destemido autor dizer as verdades). Mas que não se goze muito com o valente porque ninguém está imune a esse efeito, apesar de existirem terrenos favoráveis.
Ora, é verdade que podemos debater até que ponto um autor pode adulterar a verdade, até onde pode ir a sua liberdade artística, sobretudo quando o que está em causa são eventos históricos de uma tal atrocidade que a ficção nunca os poderá superar, mas a questão é que este autor faz da verdade uma essência do seu trabalho dizendo em entrevistas que “a mim só me interessa a ficção enquanto instrumento para contar a verdade” ou “é a verdade que faz a grandeza da literatura”. E é também por este tipo de declarações que JRS se “põe a jeito” para recolher a reprovação pública.
A “piedade” dos nazis
Que os agentes que se ocupam da sua carreira internacional escondam estas entrevistas dos editores e jornalistas franceses, porque este tipo de revisionismo de J.R. dos Santos passaria aqui muito mal. Jean-Marie Le Pen foi mais de uma vez condenado em tribunal por dizer que as câmaras de gás foram um detalhe da História, para JRS são a prova de um sentimento de piedade dos nazis para com os Judeus, isto não tem nada a ver com a verdade, isto é pura interpretação/invenção da sua parte. Uma visão extremamente problemática porque resulta num relativismo desculpabilizante.
Nas mais variadas legislações a não intenção de fazer o mal dá azo a redução de pena. Se como afirma JRS os nazis queriam fazer o bem e se até num impulso de humanidade passaram às câmaras de gás, proporcionando nos entretantos escolas para as crianças e bordeis para os adultos nos campos de extermínio, parecem merecer uma redução de pena. Afinal não eram assim tão maus.
E…
A leviandade com que JRS trata este assunto é de facto perturbante, mistura tudo, as cabeças pensantes, os executantes, a população. Este tema é altamente complexo e inspira mais questionamentos do que respostas categóricas, não basta convocar vite-fait a Arendt de forma deturpada, não basta dizer que não eram psicopatas e que aspiravam a um Bem superior, falta tanto.
E a relação à autoridade? E Milgram? E Reich? E a inibição da empatia que transforma pessoas banais em executantes próximos da psicopatia? E as mesquinhezes? E as ambições? E os egoísmos? E os medos? E as indiferenças?
Preparar o terreno
Enfim, o tema é tão vasto e complexo. Isto tudo poderia parecer anedótico se não surgisse num momento em que a ressurreição em força da extrema-direita no mundo e em Portugal não fosse tão preocupante, em que o terrorismo da supremacia branca que se inspira desta ideologia constitui hoje uma das maiores ameaças para a segurança no mundo, em que “intelectuais” com exposição pública sentem-se cada vez mais descomplexados para fazer limpezas históricas e lavagens ideológicas convenientes preparando o terreno para a aceitação do pior, em que aprendizes fascistas utilizam todas as artimanhas antigas e novas para chegar ao poder.
JRS repete várias vezes a frase, que serve de epígrafe a um dos seus livros, de Aleksandr Soljenítsin “Para fazer o mal a primeira coisa que é necessária é acreditar que se está a fazer o bem”. JRS pensará também estar a fazer bem, mas a relativização, o revisionismo do nazismo é sempre mal e constitui não somente uma indignidade em relação à Memória e às vivências de quem foi exterminado e de quem sobreviveu, mas tem ainda consequências na promoção do ressurgimento destas ideologias e das suas ramificações.
O “vale do desespero” é caminhada longa…
*Luísa Semedo, professora na Université Clermont Auvergne | Fotos © Luisa Semedo