15 de Setembro, 2024

TRIBUNA | O que é o fascismo (i) Definições e abordagens

TRIBUNA SF | Quando falamos de fascismo, do que é estamos a falar?

por Carlos Martins (*)

Entre as últimas décadas do século XX e os anos 2010, a investigação internacional pareceu ter chegado a um consenso relativamente alargado sobre quem eram os fascistas. Ainda que algumas historiografias nacionais pudessem ser uma exceção (por exemplo, alguns autores italianos, como Enzo Colloti, e da América do Sul), e que a caraterização ideológica de algumas organizações pudesse ser ainda alvo de discussão (a Heimwehr austríaca era ou não fascista?), uma parte considerável dos historiadores anglo-saxónicos, e não só, partilhava algumas noções sobre o “fascismo genérico”  (fenómeno alargado a que se convencionou chamar assim devido ao caráter pioneiro do caso italiano), e sobre que variantes nacionais exibiam as caraterísticas centrais que lhes permitiam ser inseridas no fenómeno “genérico”. As definições e abordagens, claro, poderiam variar de autor para autor.

Assim, por exemplo, para Roger Griffin, autor que foi bastante influenciado por George Mosse, o fascismo é um “ultranancionalismo palingenético”, isto é, uma variante radical de nacionalismo que procura o renascimento da comunidade nacional (esta é, talvez, a definição em torno da qual existe um consenso mais alargado). (**)

Já Stanley Payne utiliza antes uma descrição tipológica baseada nas componentes ideológicas, nas negações do fascismo e nas questões de estilo e organização (este autor coloca grande ênfase no “vitalismo” fascista). Roger Eatwell, por sua vez, chama a atenção para o objetivo fascista de criar uma comunidade holística (isto é, homogénea), bem como um “homem novo” e uma “nova elite”. Michael Mann apresentou também a sua definição, baseada nos conceitos de nacionalismo, estatismo, transcendência, “purificação” (da comunidade nacional), e o recurso a organizações paramilitares. Mesmo Robert Paxton, que se foca menos na ideologia e mais nas práticas, também escreveu uma história do fascismo que permite delimitar a sua classificação. No geral, associada a estas abordagens está a ideia de que é possível distinguir os fascistas daqueles que defendiam projetos autoritários de natureza diversa.

Mais recentemente, contudo, as abordagens transnacionais, influenciadas por trabalhos pioneiros como o de Federico Finchelstein, e resumidas numa obra editada por Arnd Bauerkämper e Grzegorz Rossoliński-Liebe, poderão ter tornado todas estas questões um pouco irrelevantes.

As abordagens transnacionais, menos preocupadas com classificações, prestam, assim, mais atenção à transferência de ideias e práticas além das fronteiras nacionais, às perceções que os contemporâneos tinham relativamente a conceitos contestados, como o do próprio “fascismo”, à adaptação dos modelos fascistas em diferentes contextos nacionais, às hibridizações que resultaram do cruzamento de influências fascistas com influências vindas de outros lugares, etc.

No limite, ao prestar mais atenção aos aspetos dinâmicos da ideológica, será possível concordar com Michel Dobry, que rejeita que seja possível encontrar uma definição “estática” de fascismo, claramente destrinçada de outras ideologias autoritárias da sua época. (**)

Assim, em autores como Chris Millington (influenciado por Dobry na sua história do fascismo francês), Ángel Alcalde Férnández (que escreveu sobre o papel dos ex-combatentes), ou entre alguns dos que escreveram na recente antologia Rethinking Fascism (editada, entre outros, por Michele Andrea), as diferenças entre os fascistas e aqueles que são tradicionalmente vistos como não-fascistas como que se esbatem. Um outro estudo de interesse, da autoria de Salvatore Garau, ao substituir a noção de “mínimo fascista” pela de “máximo fascista” pode também contribuir para tornar mais difuso o nosso entendimento do que é ou não fascismo.

O meu contributo académico entra precisamente neste ponto. Na minha tese de doutoramento, publicada com o título From Hitler to Codreanu: The Ideology of Fascist Leaders, no seguimento do que foi escrito por autores como Griffin e Payne, reitero a necessidade de utilizar uma definição de fascismo que nos permita saber que caraterísticas específicas este fenómeno incorporou, mas que ao mesmo tempo seja suficientemente flexível para abarcar o dinamismo ideológico e analisar as influências fascistas sobre projetos autoritários alternativos, que adotaram parcialmente algumas das suas componentes. (**)

No fim de contas, se não soubermos ao certo aquilo com que estamos a lidar quando falamos de fascismo, não compreenderemos os perigos concretos que este fenómeno representa e nunca seremos capazes de lhe fazer frente. (**)

Por outro lado, se não reconhecermos o dinamismo ideológico, que levou a que adversários ou aliados do fascismo se deixassem por ele influenciar, ficaremos com uma perceção limitada de como os fenómenos políticos funcionam e dos perigos adicionais que o fascismo pode representar ao inspirar projetos políticos alternativos que, mesmo sem apresentar todas as suas caraterísticas, vêm nele uma potencial fonte de ideias para destruir a democracia. A abordagem mais indicada para perscrutar o conteúdo ideológico do fascismo, capaz de abarcar tanto o dinamismo como o lado mais estático, é, como defendo na minha tese, a abordagem conceptual morfológica, apresentada num estudo pioneiro de Michel Freeden. Esta abordagem procura focar-se nos conceitos políticos que, num dado padrão ideológico, se interligam entre si para criar um significado único, exibindo cada um destes conceitos diferentes graus de relevância.

No caso da ideologia fascista, os principais conceitos que fazem parte da sua ideologia são os seguintes (os conceitos centrais são assinalados a negrito, ao passo que os conceitos que lhes são adjacentes e os ajudam a adquirir um significado são assinalados entre aspas):

  • o nacionalismo, visto que os fascistas idolatravam a nação, que viam como portadora  de uma “missão histórica” (que por vezes se traduzia no “imperialismo”) e que algumas variantes concebiam em termos “racistas”;
  • o objetivo do reforço do poder do estado, que em diferentes graus está presente em todas as variantes amadurecidas da ideologia, mesmo que pareça irrelevante em algumas manifestações iniciais de fascismo, e que tem por função trazer a “ordem” e a “harmonia” à comunidade nacional;
  • a ideia de criar uma síntese, isto é, uma “unidade” nacional em que os opostos sejam conciliados, o que remeteria tanto para a “conciliação de classes” como para a “conciliação entre indivíduo e coletivo” (em muitas variantes, mas não todas, o “corporativismo” é a solução apresentada para se atingir esta unidade);
  • a pretensa revolução, que ultrapassaria a decadência do presente e que se pautaria pela criação radical de uma “nova era” histórica e de um “homem novo”, que recuperasse os valores viris e marcais e o “vitalismo” aparentemente perdido;
  • o culto da autoridade  do novo “líder” e das novas “elites”, que se deveriam destacar pelos seus feitos “heróicos” e que assim conquistariam o direito de liderar a comunidade nacional;
  • a avaliação positiva da violência, uma vez que os fascistas, influenciados pelo “Darwinismo social” viam o mundo como um lugar de “combate”, em que aos mais fortes competia conquistar o seu lugar ao sol. (**)

Para além disto, importa referir que, na ideologia fascista, a “liberdade” surge como um conceito marginal ou que, quando efetivamente referido, aparece com uma conceção radicalmente diferente da do liberalismo (para os fascistas, “liberdade” seria a ação do indivíduo que se encontra integrado na comunidade nacional).

Por último, refiram-se três contradições que parecem ser centrais na ideologia fascista:

  • a contradição entre o “indivíduo”, que pela sua ação individual e “heróica” se destaca dos demais, e o “coletivo” (contradição que é resolvida quando os fascistas substituíam o conceito de “indivíduo” pelo de “personalidade”, que representa o “homem” que age individualmente, mas no contexto da comunidade nacional coletiva);
  • a contradição entre a pretensa “revolução” e a “tradição”, uma vez que os apelos à transformação radical da sociedade, paradoxalmente, vêm sempre acompanhados de apelos ao respeito pela ordem e por algumas tradições;
  • a contradição entre “elitismo” e “populismo”, que nunca é resolvida, uma vez que, no fascismo, o desprezo elitista pelo povo convive com uma certa admiração pelas potencialidades desse mesmo povo, do qual o líder precisa para encontrar a sua legitimidade carismática e que as novas elites deveriam moldar e comandar. (**)

Com esta definição, o fascismo surge como algo de mais concreto, que se distingue de outras ideologias, por exemplo, pela extensão do radicalismo pretensamente “revolucionário” da renovação da comunidade nacional e pelo objetivo de substituir as elites tradicionais por “novas” elites “heróicas”.

Ainda assim, com o recurso à abordagem conceptual, conseguiremos compreender também o dinamismo, as transformações ideológicas de diversas variantes, bem como a forma como outros projetos políticos autoritários foram influenciados pelo fascismo, adotando alguns dos seus conceitos ou reformulando-os e criando padrões ideológicos híbridos. É inclusivamente o caso de conceitos como o de “revolução” e de “novas elites”, utilizado por muitos conservadores antidemocráticos que se inspiraram no fascismo sem, no entanto, terem um projeto verdadeiramente radical de substituição das instituições e classes tradicionais. Deve igualmente referir-se que, para complementar esta definição baseada no conteúdo ideológico, é importante ter uma noção de quais eram as práticas fascistas (para ler mais sobre a praxeologia fascista e a forma como a ação fascista foi condicionada pelo contexto histórico em que teve lugar, veja-se Sven Reichardt, que tem uma interpretação que é, em alguns aspetos, contrária à que aqui defendemos, mas que é relevante conhecer e que, num estudo sobre o dinamismo ideológico, pode complementar a abordagem conceptual).

Assim, os diversos movimentos e partidos fascistas caraterizaram-se pelo:

  • culto da chefia carismática;
  • pela criação de organizações para a juventude (faixa etária que viam como propensa para a criação do “novo”);
  • pelos apelos à ação direta e aos métodos violentos na luta contra os adversários políticos, que incluíam a criação de organizações paramilitares;
  • pela adoção de todo um conjunto de rituais, símbolos e liturgias (como o do culto dos mortos, etc);
  • pela tentativa de mobilização constante das massas, etc (algumas destas práticas foram parcialmente adotadas por projetos autoritários alternativos). (**)

Já nos métodos para alcançar o poder político, os fascistas recorriam tanto aos legais como aos extralegais, e combinavam um discurso populista e anti sistémico com a tentativa de criar alianças com as elites conservadoras, sem as quais não conseguiram alcançar o poder.

Para rematar, refiro que, na minha investigação sobre o fascismo, encontram-se três ideias centrais que referirei de seguida, e para as quais a abordagem conceptual pode ser útil:

1 – é possível utilizar uma definição precisa de fascismo, que nos permite destrinçar quem é fascista de quem não é, sem deixar de levar em conta o dinamismo e aquilo a que o historiador David D. Roberts chamou as “interações fascistas”.

2 – como defende Constantin Iordachi, é fundamental que variantes de fascismo aparentemente irrelevantes (e que nunca se aproximaram do poder) sejam tão estudadas quanto as variantes mais conhecidas, inclusivamente as que surgiram fora do continente europeu (algo referido por Federico Finchelstein). De Eric Campbell da Austrália a George Mercouris da Grécia, passando por Jorge Von Marées do Chile, todas estas variantes nos permitem saber mais sobre as caraterísticas ideológicas que o fascismo poderia assumir e sobre as razões que explicam o seu sucesso ou fracasso.

3 – em relação com o ponto 1, organizações (como a Croix de Feu do Coronel de La Rocque) e regimes (como os de Salazar em Portugal, do rei Carlos II da Roménia, etc) que não são tradicionalmente vistos como fascistas na historiografia internacional devem também ser colocados no centro da investigação, uma vez que, ao integrar elementos de inspiração fascista, eles passaram por aquilo a que Ismael Saz chamou de “fascização” e, nunca se tornando totalmente fascistas, deram origem a resultados híbridos que fazem, à sua maneira, parte da história do fascismo e que importa conhecer (o conceito de “hibridização” tem sido  explorado por Aristotle Kallis e António Costa Pinto).

(*) Carlos Martins, autor do livro Fascismos: Para Além de Hitler e Mussolini

(**) destaque de edição SF

Imagem de destaque Image from Unite the Right rally in Charlottesville, August 2017, courtesy of Anthony Crider/Flickr.

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