14 de Setembro, 2024

O QUE É O FASCISMO (II): AS PRINCIPAIS VARIANTES DE FASCISMO

TRIBUNA SF | Quando falamos de fascismo, do que é estamos a falar?

1º Congresso nacional dos fasci di combattimento (Grupos de Combate), em Firenze, 9 e 10 outubro 1919

por Carlos Martins (*)

No texto precedente, apresentei uma breve definição de fascismo com base nas componentes do seu conteúdo ideológico. Neste texto, proponho que deitemos um breve olhar sobre as principais variantes de fascismo que existiram no período do entre guerras, e que remetem para projetos políticos que surgiram em diferentes países e cuja ideologia apresenta as principais caraterísticas que lhe permitem ser inseridas no fenómeno global a que se passou a chamar de “fascismo” (a palavra “fascismo” com letra minúscula remete para o fenómeno genérico, ao passo que, com letra maiúscula, remete especificamente para a variante italiana). Note-se que, para que a ideologia de um dado partido ou movimento (ou simplesmente de um indivíduo), adquirisse as caraterísticas que fizessem dela uma variante de fascismo, poderia ter ocorrido tanto uma influência direta do Fascismo italiano, como uma evolução independente que, num dado contexto nacional, levasse a que ela adquirisse elementos semelhantes ao do movimento de Mussolini (ou, muito provavelmente, os dois em simultâneo).

Esta breve exposição das principais variantes de fascismo servirá, assim, para dar uma ideia mais clara do quão abrangente o “fascismo genérico” poderia ser e das diferentes formulações ideológicas que se inserem num fenómeno mais alargado que marcou, não só a Europa, mas a totalidade do globo. Refira-se que, neste texto, são consideradas como principais variantes de fascismo aquelas que exibiram caraterísticas mais originais ou que se tornaram especialmente influentes a nível nacional ou internacional. As variantes aqui escolhidas coincidem com as que o historiador Stanley Payne também aponta no seu A History of Fascism, com exceção da variante austríaca, uma vez que a principal versão de fascismo neste país remetia para o “Nazismo austríaco” que, devido às semelhanças com o seu congénere alemão, não precisa de ser referida (a organização paramilitar Heimwehr, por vezes referida como “austrofascismo” não é consensualmente vista como um exemplo de fascismo). As principais variantes de fascismo são, assim, as seguintes:  

Fascismo italiano

Naturalmente associado ao movimento liderado por Benito Mussolini, criado a 23 de Março de 1919 com o nome de Fasci di Combattimento e transformado em partido em 1921. Não é consensual entre os especialistas o momento em que a ideologia deste movimento passou a exibir as caraterísticas do fascismo, uma vez que historiadores como Emilio Gentile argumentam que só a partir de 1921 se pode falar de um fascismo completamente formulado. Em todo o caso, a data de 1919 é, por conveniência, referida como a do “nascimento” do fascismo. O movimento nasceu da união de ex-socialistas e sindicalistas revolucionários que haviam apoiado a entrada do país na Primeira Guerra Mundial com alguns futuristas e antigos combatentes do conflito (os arditi). Inicialmente apresentando elementos de um movimento de “esquerda” (de uma “esquerda nacionalista”) a ideologia deste movimento foi sendo rapidamente reformulada entre 1920 e 1922 num contexto de luta contra militantes socialistas que entravam em greve e ocupavam fábricas ou terras. O culto da violência, da virilidade e da ação direta, bem como a adoção de rituais de louvor aos mortos e de organizações paramilitares, tornou-se, assim, uma parte central deste novo fenómeno político, sobretudo por causa das “batalhas” contra as organizações de esquerda, mas também por influência da breve experiência do proto-fascista Gabriele D’Annunzio, que por uns breves meses, ocupou e liderou a cidade-estado de Fiume. A luta contra o socialismo permitiu que o Fascismo ganhasse algumas simpatias junto das classes dominantes, possibilitando que, em 1922, aquando da Marcha sobre Roma, o movimento chegasse ao poder com a autorização do rei Vitor Emanuel III, dando início a uma experiência ditatorial que marcaria uma época e serviria de inspiração a outros movimentos e regimes anti-democráticos. Não se deve, contudo, pensar que o Fascismo representou um projeto político unificado e consensual. Sendo uma ideologia cheia de contradições, que o próprio Mussolini pretendia que fosse a “síntese de todos os opostos”, o Fascismo acomodou uma pluralidade de visões contrastantes, entre as quais se contavam: o “Fascismo intransigente” de Roberto Farinacci, que se dizia “radical” e anti-conservador; o “sindicalismo Fascista”, de Edmondo Rossoni, que via como essencial o objetivo de apelar à classe operária e que pretendia criar corporações que unissem todas as forças produtivas da nação; e ainda um “Fascismo moderado”, representado por Massimo Rocca, que pretendia que o Fascismo se acomodasse ao sistema político já existente. Igualmente importante foi o contributo dos nacionalistas de Alfredo Rocco e Luigi Federzoni, que se fundiram com o Fascismo depois da sua chegada ao poder, e que foram os que mais contribuíram para o sistema corporativo que o regime adotou. É talvez no texto A Doutrina do Fascismo, escrito em parceria com Giovanni Gentile, que encontramos o mais importante resumo da ideologia do regime: o Fascismo pretende criar uma nação unida e revitalizada, um estado forte, novas elites prescientes e um “homem novo”, viril e dotado para a ação, ao mesmo tempo que se apresenta como uma alternativa tanto ao comunismo como ao liberalismo. Ainda que por vezes servindo os interessentes das elites existentes (por exemplo, apesar de alguns conflitos, coabitou relativamente bem com a Igreja), o Fascismo tentou criar um novo tipo de regime, baseado no culto do líder, na mobilização constante das massas e numa série de eventos e rituais que, sobretudo nos anos 30 (era do secretário-geral Achille Starace), tentaram alterar a sociedade e a relação dos cidadãos italianos com o estado e os “chefes”. O objetivo de recriar o império, central na ideologia de Mussolini, levou à invasão da Etiópia e, consequentemente, à adoção de leis explicitamente racistas que aproximaram o regime da variante alemã. A desastrosa prestação italiana na Segunda Guerra Mundial levou à demissão de Mussolini pelo rei (previamente decidida numa reunião do Grande Conselho Fascista) em 1943, e posteriormente, com a ajuda de Hitler, ao estabelecimento da efémera (e sanguinária) República de Salò, regime em que os fascistas tentaram recuperar o radicalismo dos seus primeiros tempos.   

  

Nazismo alemão

Apesar de historiadores como Zeev Sternhell olharem para o Nazismo como um fenómeno único, que não se enquadra no “fascismo genérico” é quase consensual entre os especialistas de hoje que o Nazismo, apesar das suas especificidades, representou uma variante alemã do fenómeno associado a Mussolini. No fim de contas, tratava-se de uma ideologia que pretendia rejuvenescer radicalmente a comunidade nacional através de um movimento que era concebido como “revolucionário” (a principal diferença era que a comunidade nacional era explicitamente concebida em termos raciais). Criado em Munique em 1919 por Anton Drexler, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães adquiriu em 1920 o nome pelo qual é conhecido e acabou por ser liderado por Adolf Hitler. A ideologia deste movimento é mais coerente do que a do Fascismo italiano, e encontra-se resumida nos discursos e escritos de Hitler, sobretudo no Mein Kampf. Obcecado com aquilo que via como a influência “judaica”, que concebia como a criadora do bolchevismo e da decadência das sociedades liberais, Hitler tinha como seu principal objetivo garantir a sobrevivência da “raça ariana”. Esta seria a raça mais “pura”, responsável por todo o desenvolvimento que a humanidade conheceu ao longo da história, e que se encontra perenemente em luta contra os seus inimigos raciais, nomeadamente o “judeu”, uma anti-raça, materialista, que tinha por objetivo destruir o idealismo e “grandeza” dos arianos. Para Hitler, a história como que se resumia a uma “luta de raças”, na qual a violência era uma componente essencial. Além disso, o líder Nazi pretendia criar uma comunidade racial homogénea, que unisse num mesmo estado todos os alemães, e que se preparasse para a conquista de território no leste europeu, objetivo essencial para garantir a sobrevivência da raça e derrotar os pretensos inimigos judeus (note-se que os insultos racistas contra judeus atingem, nos textos de Hitler, um grau que poucos líderes fascistas alcançaram). Depois de ter tentado tomar o poder através de um golpe em 1923, Hitler focou-se na via legal e, com os efeitos da Grande Depressão a fazerem-se sentir, conquistou um sucesso eleitoral digno de nota. Acabou por se tornar chanceler em 1933, com o consentimento do Presidente Hindenburg e de uma parte das classes dominantes, dando início a uma das mais sanguinárias ditaduras da época, que culminou numa guerra de dimensão global e num dos maiores genocídios da história. 

Guarda de Ferro romena

A Legião de São Miguel Arcanjo, conhecida pelo nome da sua organização paramilitar Guarda de Ferro, liderada por Corneliu Codreanu foi um dos mais movimentos fascistas mais bem-sucedidos da sua época, ainda que nunca tivesse chegado ao poder. Formulando a sua ideologia num contexto em que a Roménia havia conhecido um aumento territorial digno de nota (criando a chamada “grande Roménia” depois da Primeira Guerra Mundial) o fascismo romeno teve origem nas lutas dos estudantes nacionalistas contra comunistas e judeus no início dos anos 20 e foi influenciado pelo professor Cuza. Abandonado a organização deste último para criar, em 1927, a Legião, Codreanu concebeu uma variante de fascismo na qual a componente espiritual era particularmente valorizada. Para os legionários, a missão seria a de salvar a Roménia da decadência, numa luta contra as forças satânicas do mal, de maneira a permitir que a nação, uma realidade espiritual eterna, encontrasse a salvação junto de Deus. Dispostos a lutar e a perder a vida, os legionários deveriam ter um comportamento ascético e honrado, obedecendo sempre ao seu “chefe”. Apesar destes elementos espirituais, Codreanu não deixava de ter objetivos mais terrenos, como a criação de uma comunidade etnicamente homogénea, um estado fortalecido e novas elites viris (o anti-semitismo era também uma componente importante, uma vez que os judeus eram vistos como uma das origens do mal). Os legionários tornaram-se conhecidos pelos seus rituais, de clara inspiração religiosa, bem como pelo uso da violência e pelos atentados que vitimaram diversos políticos da época. Depois de o rei Carlos II, que construía a sua própria ditadura, ter entrado em luta contra a Guarda de Ferro e de Codreanu ter sido preso e assassinado, o movimento passou a ser liderado por Horia Sima e, durante uns breves meses em 1940, esteve próximo do poder ao fazer parte do regime de Antonescu. No entanto, os conflitos no seio deste regime, levaram a que a Guarda de Ferro fosse dissolvida pelo ditador, não sem deixar atrás de si um legado de destruição. 

 

Partido da Cruz Flechada húngaro

O partido liderado por Szálasi Ferenc, ainda que pouco conhecido, terá sido um dos mais importantes exemplos de fascismo europeu. Criado em 1935 com um nome diferente daquele pelo qual viria a ser conhecido, e num contexto em que as organizações de carater fascista abundavam na Hungria, o Partido da Cruz Flechada acabou por se tornar no mais bem-sucedido do seu país, tendo inclusivamente tido resultados relativamente bons nas eleições de 1939. O líder Szálasi Ferenc, que acreditava que os húngaros representavam uma raça com características que a tornava capaz de liderança, desenvolveu uma ideologia conhecida como “Hungarismo”, que ambicionava a criação de um estado húngaro mais alargado e incluiria regiões cobiçadas pelo irredentismo húngaro. O culto do líder parecia também ser uma componente central da sua ideologia e a megalomania não estava ausente dos textos e discursos de Szálasi. Curiosamente, o próprio dizia não apoiar a discriminação racial e referia-se a si mesmo como “a-semita”, ao invés de “anti-semita”. Os conflitos com Miklós Horthy, líder do regime semi-autoritário, levaram a que o partido fosse por diversas vezes proibido e o seu líder preso. Só em 1944, com a ajuda dos Nazis, conseguiu chegar ao poder, criando um regime efémero, cujas atrocidades contra os judeus indicavam que não se deve levar a sério a aparente rejeição do anti-semitismo por parte de Szálasi Ferenc.

Falange espanhola

Um dos poucos movimentos que, de certa maneira, alcançou o poder, ainda que num regime maioritariamente liderado por forças que não eram fascistas. Criado por José Antonio Primo de Rivera em 1933, a Falange foi uma das primeiras organizações fascistas do seu país, apesar de as JONS de Ramiro Ledesma Ramos e Onesimo Redondo terem sido fundadas alguns anos antes (estas acabaram por se fundir com a Falange). Ambicionando criar uma nação unida, que se tornasse numa “unidade de destino” e cumprisse a sua “missão histórica”, Primo de Rivera rejeitava radicalmente as lutas entre partidos e entre classes, bem como os separatismos da Catalunha e do País Basco. O seu objetivo era o de que a Espanha reconquistasse uma posição de liderança, sobretudo junto do mundo hispânico, ao mesmo tempo que procurava apelar às classes trabalhadoras, prometendo dar à nação “unidade, pão e justiça”. Apesar de perfilhar os valores de inspiração católica, Primo de Rivera parecia defender a separação entre o estado e a igreja e o seu culto dos líderes abnegados e das “novas elites revolucionárias” parecia estar mais próximo do elitismo tradicionalista do que o de outros líderes fascistas. Aquando da sublevação de Julho de 1936, a Falange não havia conhecido um crescimento digno de nota, mas o número dos seus membros aumentou durante a Guerra Civil que teve lugar, tornando-se numa das mais importantes forças do lado nacionalista. Depois de Primo de Rivera ter sido executado pelos republicanos em Alicante em Novembro de 1936, a Falange, por decreto do ditador Francisco Franco, fundiu-se com os monárquicos Carlistas, dando origem àquele que seria o partido único da ditadura semi-fascista (ou mesmo “quasi-fascista”) do “generalíssimo”.  

(*) Carlos Martins, autor do livro Fascismos: Para Além de Hitler e Mussolini

Editado SF | Ilustrações

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