A fuga do inferno de Kiev
MUNDO | Guerra Rússia – Ucrânia | do Luxemburgo para o Sem Fronteiras
por António Paiva, Luxemburgo
Yuliia e Igor, mãe e filho, são dois dos cerca de 4.000 cidadãos Ucranianos que, até agora, chegaram ao Luxemburgo, deixando para tràs um país invadido pelas tropas de Putin.
Depois de uma viagem atribulada, que durou 5 dias, chegaram enfim ao Luxemburgo onde foram acolhidos pela organização LUkraine asbl criada recentemente para, em colaboração com o Estado Luxemburguês, lançar a mão aos refugiados ucranianos que deixaram para trás um país e o resto da família, num cenário de guerra, onde os confrontos armados, os bombardeamentos, a destruição, a morte de civis, adultos e crianças, se processam e se repetem, sem dó nem piedade. Trata-se de um povo martirizado e vitima dos planos maquiavélicos daquele que, não sendo o Czar, se comporta de maneira semelhante ou ainda pior pois os meios de destruição e de massacre são superiores aos existentes na época.
Acolhimento de uma família
Respondendo ao apelo de solidariedade e tendo em conta as nossas disponibilidades, acolhemos uma família, mãe e filho que deixaram, em Kiev, o marido e mais um filho com mais de 18 anos, que não obtiveram autorização para deixar o país, por terem que ajudar no combate contra as tropas invasoras. Numa aldeia, a 125KM de kiev, ficaram igualmente, para tràs, os pais e avós, para quem o desapego à terra que os viu nascer e crescer representa um acto difícil de assumir. Não obstante os perigos que quotidianamente, em volta, os ameçam, eles preferiram ficar na sua casa, como muitos outros, continuando a cuidar dos animais que os rodeiam e acompanham na luta pela sobrevivência.
Cada ruído e estrondo dos bombardeamentos é um arremesso à coragem de um povo que recusa com dor, sofrimento e lágrimas ajoelhar-se aos pés do invasor.
Corpos no Luxemburgo, espírito em Kiev
Yuliia e Igor estão em nossa casa, livres corporal e visualmente de todos os horrores de uma guerra destruidora com que o invasor continua a massacrar o povo ucraniano. Os seus corpos estão em segurança. O espírito está em Kiev e na aldeia dos pais e avós. Os rostos são afáveis, com um leve sorriso de alívio e agradecimento. Partilhamos os seus anseios, dores e lágrimas. Lançamos o encorajamento com palavras e gestos de reconforto. Organizamos visitas e passeios pelo país para tentar libertá-los do pano de fundo do inferno que deixaram para trás.
Vamos às compras e cozinhamos as nossas receitas para lhes dar a conhecer os nossos gostos e pratos tradicionais.
Um dia destes, Yuliia quis surpreender-nos com uma especialidade ucraniana. Aceitamos a sugestão. Ela que não tendo nada para nos oferecer quis, com um gesto natural de agradecimento, consolar-nos com os sabores da culinária do seu país. Cozinhou-nos o tradicional prato “Bortsch”. Sopa consistente que comparei à nossa com couves e feijões. O resultado foi excelente. Ao exprimirmos o nosso contentamento pela especialidade, com um gosto ao qual não estávamos habituados, mas muitíssimo agradável, os dois, mãe e filho, não conseguiram esconder um sorriso sereno de contentamento por nos terem oferecido um presente tão nobre e significativo.
Oferecer o que se pode, em situações de miséria e aflição, torna-se um gesto intimamente reconfortante. Poder partilhar o pouco que se tem é mais do que oferecer presentes valorosos.
Gesto solidário
Hà 52 anos, quando errava pela “Auvergne” dormindo várias noites na rua e sem ter nada que comer, ficava também muito contente e agradecido quando encontrava uma alma que me estendia a mão caridosa.
Hoje apostamos no gesto solidário.
A Yuliia e o Igor ficarão em nossa casa até ver a possibilidade de poderem juntar-se à família em Kiev. Até lá temos dado todos os passos administrativos para a regularização dos papéis, segurança social, etc., etc. Levamos o Igor a fazer os testes necessários para a integração escolar.
Tendo en conta o número de refugiados, que não pára de aumentar, o processo torna-se ligeiramente moroso. Custa tempo e paciência. Mas tudo está incluido no gesto solidário.
Poderemos quase dizer, que criamos um “Comité de desertores” para os refugiados da Ucrânia. A ferida da guerra colonial continua latente.
A história repete-se
Como a história se repete! Como as guerras se sucedem!
No fim da primeira guerra Mundial “todos” disseram: “Isto nunca mais”.
No fim da segunda guerra Mundial “todos” disseram: “Isto nunca mais”
E as guerras continuaram (continuam), coloniais, invasoras e devastadoras. Os povos inocentes continuam a pagar o preço das decisões daqueles para quem a vida humana é insignificante comparada com os interesses do grande capital mundial.
António Paiva, Luxemburgo
Foto © António Paiva | Editado 15h20 com substituição das fotos e nomes dos protagonistas a pedido do autor que quis acautelar a privacidade dos intervenientes. Foto © L´essentiel
NOTA DO SEM FRONTEIRAS: Não podemos deixar de tecer um agradecimento especial ao correspondente no Luxemburgo António Paiva pela sua disponibilidade e generosidade em partilhar com os leitores a sua experiência pessoal e da sua família. Com alguma emoção dizemos: OBRIGADO António. SF