11 de Setembro, 2024

L’abondance frugale comme art de vivre – Bonheur, gastronomie et décroissance.

LIVROS & MÚSICA | Tribuna das ideias

Comentários sobre o conteúdo dos diferentes capítulos do livro L´abondance frugale comme art de vivre – Bonheur, gastronomie et décroissance, autor: Serge Latouche

por Filipe do Carmo

É um livro que desenvolve aspectos dos textos intitulados A Agressão ao Planeta, em particular sobre o tema do decrescimento.

Escrevo um comentário (que neste caso tem alguns desenvolvimentos) sobre o primeiro capítulo do livro que é a Introdução (pgs. 7-12). Serge Latouche desenvolve nessa Introdução o tema da Felicidade e dá uma evolução histórica do conceito

Felicidade e PIB

Serge Latouche começa a sua dissertação afirmando que “Se a felicidade é geralmente associada à abundância ela não o é nunca à frugalidade”. Conforme se entende claramente mais à frente nessa dissertação, tal conceito de “felicidade” já está de algum modo ligado à ideia da sua medição através da expressão moderna de PIB (Produto Interno Bruto) per capita e de que o progresso da felicidade está dependente do firme crescimento desse indicador (que de facto traduz mais riqueza média por indivíduo do que felicidade).

Epicuro

Ora o autor, muito correctamente, gasta uma boa parte da sua Introdução a dar uma ideia da evolução histórica do conceito, começando por Epicuro (filósofo grego que viveu de 342 a 270 a.C. e que classificava os desejos em naturais e vãos, integrando nos primeiros a ataraxia, que aspirava à felicidade, e nos segundos a riqueza, a glória e o desejo de imortalidade) e referindo que esse autor tem sido considerado como um dos percursores da ideia de decrescimento.1

Séneca e Santo Agostinho

Mais tarde, Séneca (que morre em 65 d.C.), em De vita beata, procura mostrar que a felicidade não visa os aspectos materiais, mas tem origem numa vida de acordo com a virtude e a razão, segundo os preceitos do estoicismo. A seguir, Santo Agostinho (354-430), que começa por concordar com os epicuristas quando eles defendem que a felicidade não vem do prazer do corpo mas da virtude do espírito, mas repreende-os por confiarem demasiado na virtude e não o suficiente em Deus (levando-os a uma certa arrogância).

Espinosa e Blaise Pascal

Bastante mais tarde (1670 a 1680), Espinosa e Blaise Pascal têm posições próximas. O primeiro, afirmando na sua Ethica (1677) que “O desejo de viver feliz ou viver bem e de fazer o bem é a própria essência do homem”. O segundo, reafirmando no seu Pensées (1670) que “Todos os homens procuram a felicidade. Isso sem excepções, quaisquer que sejam os diferentes meios que empregam para tal.” E dá exemplos de situações à primeira vista contraditórias em que as vontades e as acções humanas acabam por sempre ir em tal sentido.

John Locke

Pouco depois (1689), John Locke, em An Essay Concerning Human Understanding, defende que (tradução do francês) “a mais alta perfeição de uma natureza razoável reside na busca atenta e constante da felicidade genuína e firme, assim como o cuidado consigo próprio para não confundir uma felicidade imaginária com uma felicidade real é o fundamento necessário de nossa liberdade”. Isto quando, após Santo Agostinho, para os teólogos medievais, “só uma vida de ascese e abstinência tal como a preconizada pelo cristianismo permite alcançar a bem-aventurança”.

Saint -Just e Jeremy Bentham

Ora é com a afirmação de Saint-Just (1767-1794) – “A felicidade é uma ideia nova na Europa” – que se pode inferir que nas vésperas da Revolução Francesa já havia emergido uma aspiração diferente da beatitude (felicidade) celestial e da felicidade pública anteriores.2 É certamente essa ideia nova de felicidade – que começa claramente a prosperar após essa Revolução – que vai substituindo como conceito a beatitude celestial e que vai mesmo além dos conceitos de felicidade de Jeremy Bentham (1748-1832) e de Locke3, e que atinge um ponto já bastante elevado em 1968 quando surge a crítica da sociedade de consumo.

2 A este propósito, Latouche observa que beatus exprime o estado de imaginação daquele que tem o que deseja, enquanto felix exprime o estado de ânimo daquele que está disposto a ter prazer. Por outro lado, beatus e os seus derivados têm sido utilizados para referir a felicidade no sentido religioso.

3 Para Bentham (promotor do utilitarismo), que defende a maior felicidade para o maior número de pessoas, estar feliz é sentir prazer e não experimentar sofrimento. Para Locke, que em particular influenciou o pensamento de Bentham, a “busca da felicidade” é uma expressão que traduz a sua preocupação com o comum das pessoas e que foi utilizada por Thomas Jefferson, na redacção da Declaração de Independência dos EUA, para expressar o direito inalienável das pessoas: “life, liberty, and the pursuit of happiness”.

Constant, Char, Panikkar e Jackson

Nessa evolução, Latouche refere em particular Benjamin Constant (1767-1830) que, num artigo publicado em 1819, procura distinguir a liberdade dos antigos da liberdade dos modernos4. Na evolução do conceito de felicidade desde então, e tendo presente a expressão “sociedade de consumo”, convirá ainda referir a preocupação de Latouche com a “bonne vie” (que para a nossa língua me parece adequado traduzir como “qualidade de vida”), o que o leva a referir mais quatro autores: René Char (1907-1988), Raimon Panikkar (1918-2010), Ivan Illich (1926-2002) e Tim Jackson (nascido em 1957).

De René Char, Latouche deixa-nos uma frase (“Uma intolerância insana nos cerca, o seu cavalo de Tróia sendo a palavra felicidade. E eu acredito que isso é fatal”) que é retirada da obra desse autor Recherche de la base et du sommet (1965, pág. 115). O que leva Latouche a recomendar que a palavra “felicidade” seja acrescentada à lista das “palavras tóxicas” elaborada por Ivan Illich5. Outro termo que Latouche refere para transmitir alguma possível falta de precisão das palavras que têm surgido nas diferentes línguas (ou mesmo em épocas distintas numa mesma língua) para traduzir a ideia de felicidade é o de homeomorfismo, termo introduzido por Raimon Panikkar6, também filósofo e teólogo, tal como o seu amigo Illich. Panikkar fala em equivalentes homeomórficos de conceitos que têm surgido com origem em diferentes religiões ou culturas. Assim, o caso de beatitude e felicidade (béatitude e félicité em francês, embora o termo mais usado neste último caso seja bonheur, cuja origem etimológica seja bon heur, que traduz “bom augúrio”). Outros termos em outras línguas (por exemplo, Glück e happiness) poderão ter etimologias específicas.

4 Para esse autor, a liberdade dos antigos consistia, em particular, em exercer colectivamente, em praça pública, a sua soberania, deliberando sobre a diversidade de questões que afectavam a comunidade. E essa liberdade devia ser compatível com a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo. Quanto à liberdade dos modernos, que incluía o direito de influir sobre a administração do governo, caracterizava- se sobretudo pela prerrogativa de expressar uma opinião, de dispor da sua propriedade e de até abusar dela, não estando submetido ao dever de prestar contas dos seus motivos ou dos seus passos. Vemos aqui já mais claramente expressos do que em Jefferson os princípios do liberalismo e que, em tempos que estão mais próximos de nós, a respectiva influência nos desenvolvimentos do neoliberalismo.

5 Ivan Illich utiliza também outras designações para se referir a “palavras tóxicas”, como “palavras plásticas” (que vai buscar ao seu amigo Uwe Pörksen). Outras “palavras tóxicas” francesas, além de “bonheur”, referidas por Latouche: “développement”, “environnement”, “égalité”, “aide”, “marché”, “besoin”.

6 Ver o artigo desse autor de 1998 em InterCulture, nº 135, pg. 104: Réligion, philosophie et culture.

Qualidade da vida

O cuidado que Latouche dá à expressão “qualidade de vida” fá-lo pensar em Tim Jackson, o qual já é apresentado como um crítico da emergência da felicidade à sua redução economicista do PIB per capita (Prosperity Without Growth: Economics for a Finite Planet, “Earthscan Publications Ltd.”), mas também como o defensor de uma qualidade de vida assente numa abundância frugal, numa sobriedade feliz em contexto de “prosperidade sem crescimento”.7

7 Está disponível na Internet um artigo de um comentador – Armand Rioust de Largentaye – de três páginas, com o título Prospérité sans croissance, o qual inspira as notas que se seguem.

Armand Rioust de Largentaye

Inovação, crescimento e consumo

As centenas de páginas do livro acabado de referir são naturalmente insusceptíveis de serem resumidas em algumas linhas. Mas alguns pontos poderão ser referidos. O autor começa por referir cálculos da ONU que mostram que em 2050 a economia mundial tenderá a ter 15 vezes a dimensão da que tinha em 2010, o dilema do nosso sistema económico sendo que ele se tornou “prisioneiro” do crescimento. O que significa que contrariar o crescimento requer uma preocupação com a psicologia social do consumidor já que os motores do sistema económico – inovação, crescimento e consumo – continuam a puxar a sociedade moderna para situações angustiantes.

Por outro lado, a desejada eficácia económica leva a pressionar o emprego, procurando reduzir continuamente a mão de obra sem se preocupar com a redução dos fluxos (portanto sempre mais recursos materiais e os resíduos deles resultantes). E, longe de atingir um equilíbrio e uma prosperidade estáveis, o actual sistema económico continua eminentemente instável. Assim, quando acusa baixas da procura a desordem chega ao emprego, ao investimento, à capacidade produtiva e às finanças públicas e privadas.

E tal desordem não é aproveitada para corrigir o sistema (à recente pandemia, os governos das nossas “democracias” só pensam em fazer-lhe suceder a retoma do crescimento).

De entre as etapas que são propostas para aproveitar a ocasião que as “desordens” criam, sublinha- se uma, que seria a reforma da sociedade de consumo para lançar as bases de uma sociedade frugal, de desigualdades reduzidas, baseada numa organização mais participativa da actividade económica e social. São com efeito as condições de aplicação do laissez-faire e das regras e constrangimentos sociais que é necessário rever. E, quaisquer que sejam hoje em dia as opiniões sobre o crescimento, será preciso ter em consideração que

o desenvolvimento durável não poderá ignorar a questão das desigualdades sociais, sejam elas nacionais ou planetárias.

A propósito da frugalidade, dever-se-á ter em conta o que Latouche refere logo no início da sua Introdução: que a frugalidade não é naturalmente compatível com “nadar na felicidade” mas não equivale necessariamente à austeridade. Ela faz sim a economia de todo o consumo não necessário, podendo no entanto ser rodeada de felicidade, de alegria. Não conduz senão a uma autolimitação voluntária das nossas necessidades, não excluindo nem a convivialidade nem uma certa forma de hedonismo.

Em particular, a gastronomia, entendida como a arte de bem comer graças a uma cozinha sã, refinada sem ser ascética ou orgíaca, faz parte dessa arte de viver preconizada pelo decrescimento. Como o autor bem reconhece ao associar a este tema o livro do célebre gastrónomo italiano, Pelegrino Artusi (1820-1911), La Scienza in cucina e l’Arte di mangiar bene.

Um livro que, durante a vida do autor, conheceu enorme número de reedições e foi, durante muito tempo, o único que os pobres conheciam, tendo contribuído bastante para que gerações de italianos tenham aprendido a ler.

Lisboa, 9 de Abril de 2022

Filipe do Carmo

Foto de Latouche de © Niccolò Caranti 

Editado Sem Fronteiras | Ilustrações e subtítulos da responsabilidade do SF.

Editor

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