No tempo em que os pinhais não ardiam
LIVROS & MÚSICA | Livros do Exílio e da deserção contra a guerra colonial (1)
Tentamos anualmente dar o nosso contributo à divulgação de livros e publicações diversas que apresentam uma relação forte com os temas do exílio e da deserção à Guerra Colonial. Trata-se, numa dimensão e com o impacto possível, incentivar à escrita e à publicação sobre temas que têm tido uma abordagem crescente por parte de protagonistas diversos e que surgem ainda mais interessantes quando são tratados na primeira pessoa. Trata-se também de incentivar os leitores e comprarem e a apoiarem estas iniciativas que são sempre muito esforçadas por parte de quem as promove.
Damos início a esta Feira do Livro Informal e de pequena escala com Fernando Cardeira cuja ação neste campo das “memórias da deserção” se tornou referência pelas iniciativas ás quais está associado desde há uns anos a esta parte. Crónica de uma Deserção – Retrato de um País é o livro que o autor tem vindo a divulgar, com sessões públicas que alimentam o debate sobre estes temas centrais do exílio e da deserção contra aGuerra Colonial.
Por seleção do próprio autor publicamos um excerto do livro que nos conduz à sua aldeia e destacamos a foto do resineiro, no livro na pág. 251, que foi publicada na revista Spartacus em Outubro de 1974.
Por Fernando Mariano Cardeira
No tempo em que os pinhais não ardiam
Numa zona de pinhal, como é grande parte dos concelhos da Nazaré e de Alcobaça, tudo o que o pinheiro produzia era aproveitado. Essa actividade constituía uma parte importante da ocupação das populações ao longo do ano. Desde a caruma (ou “aguilhota”, no dizer local), a casca ou carrasca, a rama que era atada em molhos chamados de “motano”, usados como combustível nas fábricas de vidro existentes em Pataias e na Marinha Grande, até ao enorme cepo que ficava enterrado, depois de cortado o pinheiro, e que era preciso arrancar da terra, tudo servia para se fazer algum dinheiro.
Uma outra actividade importante nos anos 50 e 60 era a apanha das pinhas (designadas em Fanhais por “pinhocas” ou “pinhocos” conforme as pinhas estivessem abertas ou fechadas). Era um trabalho muito difícil e penoso, que se fazia ou subindo aos pinheiros, actividade normalmente reservada para as crianças, ou com longas e pesadas varas ou varolas armadas de ganchos ou garranchos que arrancavam os pinhocos dos ramos mais altos do pinheiro. Não havia tempo para deixar os pinhocos amadurecerem, quem chegasse primeiro é que os apanhava. Estes eram depois estendidos nas eiras a secar para abrirem com o sol e deixarem sair a semente, o penisco, um produto que se vendia a bom preço. As próprias pinhas, depois de abertas pelo calor do sol, recuperado o penisco, eram usadas para acender as lareiras e eram muito procuradas, tanto na Nazaré como em Alcobaça. Ir vender pinhas à Maiorga, a Alcobaça e à Nazaré era um trabalho regular para as gentes de Fanhais.
Quem viveu estes tempos entende bem porque é que raramente havia incêndios nestes pinhais. Tudo era aproveitado dos pinhais, e em muitos casos era até necessário pedir autorização ao dono do pinhal para apanhar a caruma, as pinhas ou a carrasca. Os pinhais estavam naturalmente limpos, devido às necessidades das populações locais. E se um fogo se iniciasse havia sempre alguém a trabalhar nos campos, nas hortas ou nas matas, não muito longe, que dava o alarme, tocando o sino da pequena igreja, e rapidamente aparecia a aldeia em peso a combater o incêndio. Nunca assisti a grandes incêndios nem me lembro de alguma vez ter visto por ali um carro de bombeiros, pois nem estradas havia! Mesmo um ou outro fogo em habitações da aldeia era combatido com baldes de água que passavam de mão em mão em longas filas de pessoas que acorriam de todos os cantos da povoação.
A vida das crianças nestas aldeias pobres e isoladas não era tão idílica como poderá por vezes transparecer das recordações que guardamos da infância pois, felizmente, quase sempre remetemos as mais penosas memórias para o fundo da nossa mente. Lembro-me ainda muito bem dos Invernos frios, com chuva e vento que por vezes nos apanhava no meio dos pinhais, ainda longe do calor da lareira, que estava quase sempre acesa em casa. Por vezes abrigávamo-nos em casotas abandonadas, muito raras, ou, mais frequentemente, em espigueiros rudimentares, feitos com a palha de milho que fora cortada e era armazenada de modo a constituir uma pequena cabana de duas águas. O cheiro da palha de milho, da terra molhada e o ruído da chuva que caía sobre o improvisado abrigo, acabavam por constituir um momento de agradável convívio familiar, enquanto a chuva não parava, ou até a fome apertar e ser necessário meter pernas a caminho para regressar a casa, esfomeados, encharcados e enregelados.
A roupa e o calçado nestas aldeias eram muito rudimentares, e nem sempre suficientes para nos agasalhar no Inverno, ou para nos proteger no Verão. Nas casas mais pobres, a maioria delas, muito pouco confortáveis, os irmãos dormiam juntos na mesma cama, rapazes e raparigas, e nem sempre seria por falta de espaço, mas sim porque juntos resistiam melhor ao frio. Numa época em que não se falava ainda de trabalho infantil, o trabalho das crianças era aproveitado, com naturalidade, por toda a gente, pobres ou remediados. Havia sempre alguma tarefa no trabalho dos campos em que uma criança podia ajudar, fosse a pegar num sacho para abrir uma regueira, apanhar fruta, vindimar, ou mesmo tomar conta dos irmãos mais novos, que eram levados para as terras dentro de alcofas ou grandes cestos de verga, chamados poceiros.
A partir dos sete ou oito anos, esse trabalho das crianças passava a ser mesmo uma obrigação a cumprir. Passava-se das simples tarefas de fazer recados para a obrigação de passar os dias inteiros, quando não havia escola, junto dos pais para ajudar nas tarefas agrícolas, que podiam incluir semear batatas, milho ou feijão, plantar couves ou árvores de fruto. Nas épocas das diferentes colheitas, e sobretudo na altura das vindimas, o trabalho das crianças era um suplemento que nenhuma família dispensava, feito às vezes à revelia da Escola. Faziam-no os jovens com cara alegre? Nem sempre, principalmente quando sabiam que havia amigos seus que estariam talvez a jogar à bola, a jogar à malha ou, melhor ainda, na Lagoa do Gago a banhar-se, enquanto eles tinham que andar na vindima até ao fim do dia.
Crónica de uma Deserção
ISBN 9789727807604Edição/Reimpressão 03-2021Editor: Âncora EditoraIdioma: Português
Dimensões: 147 x 229 x 15mm
Encadernação: Capa mole Páginas: 264Tipo de Produto: LivroClassificação
Imagens da aldeia
Foto publicada na revista Spartacus em Outubro de 1974
Fotos © Fernando Mariano Cardeira