14 de Setembro, 2024

OPINIÃO – A geopolítica no nosso século XXI

O RECENTE CONFLITO NATO-RÚSSIA

Emmanuel Todd

por Filipe do Carmo

Numa recente crónica1 publicada no jornal Le Monde, o autor (Alain Frachon) dá grande atenção à guerra da Ucrânia, salientando as dificuldades russas em fazer vergar esse país. Tais contrariedades seriam devidas não só ao apoio militar que a Ucrânia tem recebido dos EUA e de países europeus, mas também às dificuldades derivadas das condenações relativas ao desencadeamento da guerra que tiveram lugar na ONU e à falta de aprovação clara à guerra por parte da China. São questões que já conduziram a uma afirmação de que a Rússia é cada vez mais um país “vassalo” de Pequim.2 Pode-se compreender tal situação de “vassalidade” aplicada a um Estado quando a sua soberania é afectada por uma crescente dependência face a outro Estado ou mesmo a uma organização internacional. O que é por exemplo o caso da dependência em que bastantes Estados europeus se encontram face à União Europeia e mesmo desta face aos EUA e à NATO. Como se verifica actualmente com a recente sujeição dessa União a condições económicas mais desfavoráveis em termos de aquisição de armas e gás americanos.3

Referências a dificuldades russas em fazer vergar a Ucrânia ou às fortes possibilidades de no presente ano esse país vir a poder celebrar uma vitória na guerra (como se depreende do título do artigo de Teresa de Sousa) são claramente contraditadas numa entrevista feita a Emmanuel Todd (antropólogo e historiador) e publicada há cerca de um mês no jornal Le Figaro4. Nessa entrevista, Todd, em particular, considera os jornais ocidentais (e não só o que é referido por Teresa de Sousa) como “tragiquement amusants” por eles não se cansarem de dizer «La Russie est isolée, la Russie est isolée». E prossegue, dizendo que quando se tem em atenção os votos na ONU, não se pode deixar de constatar que 75% do mundo não segue o Ocidente, Ocidente esse que assim nos aparece como bastante pequeno. Naturalmente que para pôr em causa as fortes possibilidades de a Ucrânia vir em breve a festejar uma vitória na guerra, Todd teve que apresentar argumentos que vão mais longe que a constatação referida. É sobre tais argumentos que incidem os próximos parágrafos.

No início da entrevista, Todd começa por recordar que se pensava, quando a guerra estalou, que o exército russo era extremamente poderoso, o que faria com que a Ucrânia viesse a ser esmagada militarmente. Ora isso não sucedeu, embora ela tivesse perdido 16% do seu território até à data (12 de Janeiro de 2023) em que a entrevista foi concedida. Também se pensava que a Rússia iria ser esmagada economicamente (dado que a sua economia era muito fraca) pelo Ocidente e tal não sucedeu (a esse propósito, Todd afirma que o rublo ganhou, desde a véspera do início da guerra, 8% ao dólar e 18% ao euro). A explicação que o autor dá para a resistência que a Ucrânia tem oferecido – considerando que Putin cometeu um grave erro quando admitiu que a Ucrânia era uma sociedade em decomposição e se afundaria ao primeiro choque – é que essa sociedade, alimentada por recursos financeiros e militares exteriores (como bem se sabe, oriundos dos países ocidentais), encontrou na guerra um novo tipo de equilíbrio e mesmo um horizonte, uma esperança. Ainda quanto à questão económica, o que se tem verificado, para além da resistência russa, é que os europeus, “obrigados” a contribuir economicamente para a guerra, vieram a ser afectados por penúrias e pela inflação. No respeitante aos efeitos da guerra nas economias russa e americana, convirá dar previamente uma ideia dos comentários que Todd faz à análise feita pelo geopolítico americano John Mearsheimer à situação que precede o desencadeamento do conflito.

Ora Mearsheimer havia compreendido que não só a Ucrânia – cujo exército teria passado a ser apoiado ou mesmo controlado pelos militares da NATO (americanos, britânicos e polacos) desde pelo menos 2014 – era já, em consequência e de facto, membro da NATO, mas também que os russos não tolerariam nunca que esse país viesse a ser incorporado nessa organização. E isso significa que fazem uma guerra que é, do seu ponto de vista, defensiva e preventiva. O que conduz Todd a considerar que quando o autor americano disse que a Ucrânia era já de facto membro da NATO, ele não foi suficientemente longe. Na realidade faltou-lhe acrescentar que tanto a Alemanha como a França se haviam tornado parceiros menores na NATO e que não estavam ao corrente do que se tramava na Ucrânia em termos militares. A já criticada ingenuidade desses dois países virá provavelmente de que eles não sabiam que americanos, britânicos e polacos haviam capacitado a Ucrânia para estar em condições de levar a cabo uma guerra durante mais tempo. É que o arco fundamental da NATO é agora Washington-Londres-Varsóvia- Kiev. Mas Todd vai ainda mais longe e diz que Mearsheimer, como bom americano, valoriza demasiado o seu país ao considerar que, se para os russos a guerra da Ucrânia põe em risco a sua existência, para os americanos ela não é senão um “jogo” de poder entre outros (após o Vietname, o Iraque e o Afeganistão que importância poderá ter mais um desastre? E nada poderá pôr em perigo a existência da América!). Ora para Todd a América é frágil, pois a resistência da economia russa empurra o sistema imperial americano para o precipício. O que os próprios russos não haviam antecipado pois não havia sido previsto que a economia do seu país aguentaria face ao “poderio económico” da NATO.5

E, afirmando que tanto a Rússia como os Estados Unidos não se podem retirar do conflito, Todd acha que todos nós vivemos agora uma guerra sem fim, um afrontamento que não terminará sem o colapso de um ou de outro. Enquanto antropólogo, Todd sabe que esta guerra não é só militar e económica, é também ideológica e cultural. Tendo já havido na Rússia estruturas familiares mais densas, comunitárias, certos aspectos de tais estruturas sobreviveram, entre os quais um sentimento patriótico que é algo que dificilmente será compreendido entre nós e que é alimentado pelo subconsciente de uma nação-família. Com uma organização familiar patrilinear em que os homens estão no centro, tal nação não pode aderir a todas as inovações ocidentais (neofeminismo, LGBT, transgenerismo,…). Inevitavelmente, quando nações como a Rússia aprovam medidas repressivas face a tais inovações, os ocidentais sentem-se superiores, considera Todd. Mas o autor também observa que, de um ponto de vista geopolítico, tal sentimento será certamente um erro. Isto porque, sendo a organização de parentesco, em 75% do planeta, patrilinear, haverá neste nosso mundo uma forte compreensão das atitudes russas, entendidas como um conservantismo moral tranquilizador.

Mas não só a Rússia poderá contar com o apoio ou a compreensão de 75% do planeta. As suas condições internas, na análise de Todd (que contradita a ideia existente a tal propósito entre os ocidentais), melhoraram significativamente com Putin a partir da primeira década dos anos 2000. Para os russos essa década representou um retorno ao equilíbrio, a uma vida normal, após os anos 90, período de sofrimento inaudito. Com o regresso ao equilíbrio, as taxas de suicídio e de homicídio foram-se afundando e a taxa de mortalidade infantil, indicador fundamental, desceu imenso, vindo a revelar-se inferior à americana. Daí que, no espírito dos russos, Putin tenha incarnado tal estabilidade, e a guerra ucraniana seja entendida para o comum dos cidadãos do país como defensiva. Para eles, a boa preparação económica que consideram existir aumentou a sua confiança, não propriamente face à Ucrânia mas face ao que eles designam como “Ocidente colectivo”, ou seja “os Estados Unidos e os seus vassalos”. Para o autor, a verdadeira prioridade do regime russo não é a vitória militar no terreno mas sim não perder a estabilidade social adquirida nos últimos 20 anos.

Todd não fica contudo por aqui e faz na entrevista considerações que ajudam a compreender porque é que considera que a Terceira Guerra Mundial já começou e pensa que ela poderá ter uma duração de cinco anos, com um resultado que não podemos antecipar neste momento. Não só um confronto dos 75% do planeta (em que predominam as organizações familiares comunitárias e patrilineares) com as áreas ocidentais (onde se afirma a estrutura familiar nuclear e se desenvolvem os sistemas bilaterais de parentesco) poderá ir mais longe que as manifestações de empatia que actualmente se desenvolvem (alastrando mais ou menos no terreno especificamente político), como será necessário percepcionar mais adequadamente os sistemas económicos que se opõem e as respectivas capacidades para alimentar os esforços militares de uma e de outra parte. Mas esse é um domínio que será deixado para mais tarde, num texto que procurarei disponibilizar em breve e que ganhará em ser complementado com percepções da situação crítica em termos económicos e sociais em que o mundo ocidental tem vindo a mergulhar. Já recentemente divulguei um texto em que analisava o crescimento abissal das desigualdades que tem afectado o nosso mundo ocidental6 e que o extremo desenvolvimento nos últimos meses da inflação só tem agravado. Teremos naturalmente de estar conscientes de que esse agravamento não deixará de ter uma forte influência nos equilíbrios sociais e que isso afectará – interessa começar a pensar como – a Terceira Guerra Mundial “pressagiada” por Todd.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2023

Filipe do Carmo


NOTAS

1 “En 2023, un nouveau monde”, 2022-12-30, pág. 22.

2 Ver, em particular, o artigo recente do Público (2023-01-08, pág. 9) de Teresa de Sousa: “2023, o ano decisivo para a vitória da Ucrânia”. A afirmação relativa à crescente vassalagem da Rússia face a Pequim baseia-se nas referências que a autora faz aos apoios que a Rússia tem na comunidade internacional:

«Perdeu apoios nos países da Ásia Central que já foram parte da União Soviética e que querem distanciar- se do Kremlin. A lista dos seus aliados reduz-se a quatro: Irão, Coreia do Norte, Bielorrússia e China.»

3 Situações que revelam concordância com o referido num parágrafo do texto (“NAH”, ver em https://semfronteiras.eu/?s=NAH ) assinado, em Março de 2022, por “Novas Gerações”: «Reduzido a três Estados ainda realmente soberanos – os EUA, a China e a Rússia – o nosso mundo assiste a desenvolvimentos que começam por prenunciar a saída do grupo deste último Estado. A agressão em curso que ele exerce sobre um dos Estados subordinados à tutela americana – a Ucrânia, Estado fantoche em que a [sua] classe política … se mostra disposta a sacrificar (a exemplo do que Salazar quis fazer com o exército português na Índia em 1961) a sua população…».

4 Ver Emmanuel Todd: «La Troisième Guerre mondiale a commencé» (lefigaro.fr). O autor publicou recentemente um livro a propósito da guerra referida, com o título La Troisième Guerre mondiale a déjà commencé.

5 E Todd começa por explicar a fragilidade americana dizendo que “Si l’économie russe résistait indéfiniment aux sanctions et parvenait à épuiser l’économie européenne, tandis qu’elle-même subsisterait, adossée à la Chine, les contrôles monétaire et financier américains du monde s’effondreraient, et avec eux la possibilité pour les États-Unis de financer pour rien leur énorme déficit commercial. Cette guerre est donc devenue existentielle pour les États-Unis. Pas plus que la Russie, ils ne peuvent se retirer du conflit, ils ne peuvent lâcher. C’est pour ça que nous sommes désormais dans une guerre sans fin, dans un affrontement dont l’issue doit être l’effondrement de l’un ou de l’autre. Chinois, Indiens et Saoudiens, entre autres, jubilent.”

6 Como explicitei num texto que enviei recentemente sobre a COP27, Thomas Piketty, numa das suas recentes crónicas no jornal Le Monde (2022-11-07, pág. 31) com o título “Redistribuer les richesses pour sauver la planète”, refere que, em França, as 500 maiores fortunas passaram, entre 2010 e 2022, de 200 mil milhões de euros para um milhão de milhões (1 bilião), ou seja, de 10% para perto de 50% do PIB (duas vezes mais de tudo o que possuem os 50% mais pobres). Mais escandaloso ainda que esse enriquecimento de 800 mil milhões, refere ainda Piketty, foi que esses beneficiários apenas tenham pago de imposto sobre o rendimento, durante todo esse período, o equivalente a menos de 5% desse enriquecimento (e tudo isso é mais ou menos equivalente ao que se passa nos Estados Unidos em termos de tributação dos seus milionários – ou bilionários?). Piketty chama ainda a atenção para o facto de que, se o governo francês fizesse incidir uma tributação excepcional de 50% sobre o tal enriquecimento de 800 mil milhões, poderia ter reunido 400 mil milhões de euros. Ora eu constato que tal posição até é muito pouco ousada por parte do cronista, dado que, mesmo com tal tributação excepcional, as tais 500 maiores fortunas ainda teriam passado a valer 600 mil milhões em 2022, quando em 2010 eram de 200 mil milhões (uma multiplicação por 3!). Convém de facto ter presente que, nos tempos de Roosevelt (anos 30), nos EUA, tributações da ordem dos 80-90% foram introduzidas com sucesso e mantidas durante meio século, inclusivamente em países europeus. O escândalo da baixa tributação dos excessivamente ricos em França (que tem paralelos em praticamente todos os países do mundo) vai, no entanto, ainda mais longe quando se sabe que, recentemente, foram vetadas pelos poderes instituídos decisões do parlamento francês no sentido de aumentar em reduzidos milhões de euros investimentos na renovação térmica dos edifícios e das redes ferroviárias (que contribuiriam para reduzir o aquecimento global), sob o pretexto de que não havia meios financeiros para tais generosidades…

FILIPE DO CARMO

Editor

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.