Para além do genocídio, o sionismo
Afinal quem é esta gente?

OPINIÃO – Carlos V. Ribeiro
Em relações internacionais as situações de facto, são o que são. Em muitos casos de pouco valem as apreciações baseadas na ideologia ou nas opções políticas para encontrar explicações para situações aparentemente paradoxais. São relações de força e principalmente dinâmicas de Estado que muitas vezes pouco têm a ver, circunstancial e especificamente, com quem está no poder. Isto a propósito de Israel e do conflito no Médio Oriente que não pode ser justificado apenas pela liderança da extrema-direita radical que governa em Telavive. A guerra do pós 7 outubro fez emergir para o cenário mais global das disputas entre as principais potências do globo o que aparentava ser matéria circunscrita a uma região.
Nas últimas décadas a questão da existência do Estado de Israel foi-se colocando de forma cada vez mais pragmática, como uma situação de facto e os Acordos de Oslo, nem sempre de forma entusiástica, passaram a ser uma referência razoável com potencial de pacificação e de coabitação de povos que se encontram em conflito desde 1948, desde a ocupação do território palestiniano pelos israelitas ocorrida com a proteção das instituições internacionais, com a bênção dos ingleses e mais tarde com o apoio dos Estados Unidos da América.
Hoje a acusação de anti sionismo encontra-se na boca de todos os defensores das políticas belicistas de Telavive quando pretendem afastar das suas consciências o genocídio em Gaza e tentam marginalizar politicamente quem exige uma Palestina Livre. Acusam e dramatizam para tentar colar o anti sionismo ao anti semitismo e no fundo tentar fazer passar a mensagem que os defensores de uma Palestina Livre e Autónoma são contra os judeus e eventualmente até poderão até ter tido alguma insensibilidade face ao Holocausto.
Na verdade, importa recordar que os primeiros anti sionistas foram os próprios judeus
que recusaram a ideia absurda de deixarem de ser cidadãos franceses, holandeses, gregos, colombianos, canadianos, entre outros, com uma vida social idêntica à de milhões de compatriotas, recusando ser considerados outra coisa que o que eram efetivamente: parte dos povos a que sempre pertenceram. As teorias sionistas de Theodor Herzl, divulgadas no seu livro “O Estado Judeu” [1896], foram consideradas devaneios de setores radicais e extremistas, sem qualquer sentido para uma esmagadora maioria dos judeus do mundo.
Da mesma forma face a situações de discriminação objetivamente verificáveis, a recusa de qualquer solução da chamada questão judaica fora do quadro mais geral da luta de minorias pela justiça e pela igualdade no quadro das movimentações organizadas pela IIIª Internacional Comunista levou milhões de trabalhadores judeus de todos os países do mundo a rejeitar liminarmente qualquer ideia separatista e isolacionista de um Estado Judeu e marcou um alinhamento anti sionista de grande relevância na História do Século XX.
Muitos historiadores recusam de forma categórica a relação determinante entre a Shoa e a fundação do Estado de Israel em 1948.
Referem que o sentimento dominante nos judeus no pós-segunda guerra mundial era a vergonha e não a vingança. Também a ideia de um refúgio seguro, depois da dramática tentativa de exterminação por parte dos nazis, não é valorizada pelos avaliadores de impacto do conflito global imposto por Hitler e pelos aliados da Alemanha nazi, atendendo à insegurança que o projeto de “viver na terra de Israel” representava.
O projeto de uma Estado Judeu aparenta ter sido concebido e concretizado principalmente associado a interesses geopolíticos e económicos, a radicalismos religiosos e a utopias libertadoras pouco precisas que cavalgaram no ambiente imperialista, colonial e emocional do pós-guerra.
Hoje, face ao genocídio e à ação do Estado de Israel como um Estado terrorista, os traidores involuntários da sua própria memória e consciência e da sua leitura do mundo com exigência de justiça e defesa inabalável do princípio da autodeterminação dos povos dificilmente conseguirão manter-se no registo conciliador, pragmático e até generoso dos Acordos de Oslo.
O genocídio em curso, em Gaza, suscita muitas interrogações para além das questões militares, humanitárias, geopolíticas. Leva-nos a repensar o que discretamente nos tinha sido proposto como um sono intranquilo, mas apesar de tudo aceitável. Mas estamos a despertar, não principalmente das posições, mas antes da inação e perguntamos: mas afinal que é esta gente?