AMBIENTE E ECONOMIA | DOSSIÊ – Parte 4
A AGRESSÃO AO PLANETA (IV)
O conjunto da população mundial emitia em média, per capita, 6,6 toneladas de CO2 em 2019, conforme já referido em texto anterior.
Face ao objectivo, também apontado acima, de em França a emissão desse gás não ultrapassar 2 toneladas em 2050 (o que pode ser tido como um máximo a respeitar para a média planetária), poderemos daí inferir o desafio que se apresenta aos diferentes Estados no sentido de ser atingido tal desiderato. Desafio, certamente, que se coloca, tanto aos Estados como a todos nós conforme a questão “Estaremos nós prontos a modificar profundamente os nossos hábitos e a pôr em causa a maneira como nos deslocamos, como ocupamos os nossos alojamentos, como nos alimentamos?”.[1] Mas trata-se de um desafio com características mais particulares no respeitante aos Estados, já que as transições necessárias precisam por um lado de ser programadas com medidas que permitam introduzir alguma moderação à sobriedade indispensável ou criar condições para que ela seja mais facilmente tolerada (em particular incentivando a evolução para as energias renováveis e actuando no sentido de contribuir para tornar aceitável psicologicamente a nova situação) e, por outro, impor medidas (eventualmente por via da fiscalidade) que conduzam à superação de situações que derivem da não aceitação da referida sobriedade.
Face a uma tal decisão política de optar por um decrescimento que em princípio parece mais adequado a países desenvolvidos, observar-se-á que as medidas aplicáveis por via da fiscalidade deverão ser definidas de modo a contrariar a evolução já em curso que tem conduzido a reforçar transformações do tecido económico que levam a mais emissões de GEE e logo a aumentar o caos que a tal nível já existe.
Será necessário, em primeiro lugar, definir, directa ou indirectamente, quais os sectores económicos que prioritariamente deveriam ser objecto de reduções significativas de produção. Os domínios que aparecem como mais indicados para tal intuito começariam por ser os que estão associados aos consumos e investimentos das classes mais elevadas de rendimento, a começar naturalmente pelos 1% mais ricos, que são os que mais contribuem para as agressões ao meio ambiente. Recordem-se as 110 toneladas emitidas, no conjunto do planeta, por cada um dos habitantes (em média, per capita) desse estrato populacional, a comparar com as 6,6 toneladas da média mundial. A redução de tais consumos e investimentos, que idealmente se poderia conceber ser conseguida através de apelos à sobriedade dirigidos a tais classes mais elevadas de rendimento, dificilmente poderá ser atingida sem medidas aplicadas pelos Estados que conduzam a uma forte diminuição desses rendimentos. O que não se pode esperar que seja possível sem um acréscimo significativo da tributação sobre os mais ricos, regressando à forte progressividade – ou mesmo aumentando-a – que já caracterizou décadas passadas. Seria este agravamento da fiscalidade, deverá entender-se, que iria conduzir a restrições na procura e, em consequência, a provocar directamente quebras de produção em sectores abastecedores desses estratos populacionais e indirectamente nos que se encontrassem a montante.
Numa segunda fase (há que ter em atenção que não se pode tentar fazer tudo ao mesmo tempo, senão o caos atacará com mais força) seria necessário passar aos 9% que seguem os referidos 1%, tendo presente que tal estrato é responsável por cerca de 30% das emissões de CO2. Admitindo que a aumento da progressividade da tributação referido atrás já teria afectado este estrato, será então o momento de fazer eventuais ajustamentos a essa medida, eventualmente reforçada de modo a atingir mais adequadamente esse conjunto de contribuintes. Será agora o momento, por outro lado, de chamar a atenção para que a progressividade a impor aos contribuintes não será forçosamente limitada aos impostos sobre o rendimento, sendo possível dar-lhe um perfil mais complexo que passe por tributações incidentes sobre bens que são objecto de compra e de uso pelos estratos mais abastados (por exemplo impostos sobre os bens imobiliários, tanto no momento da aquisição como no decurso da respectiva utilização).
Chegaríamos assim a uma situação em que sectores dependentes do turismo, da construção de imobiliário de alta qualidade e, em geral, de consumos ligados às classes mais abastadas, entrariam em crise. O que seria ainda agravado, em fase posterior de preferência, por novas medidas a nível da fiscalidade que visassem mais especificamente os 40 % da população que se seguem aos 10% mais ricos.
Será altura de chamar a atenção para consequências destas evoluções que não deixariam de atingir os 50% dos mais baixos escalões de rendimento. Consequências que assumem particular destaque para os que trabalham para os sectores económicos atingidos pelas medidas tomadas nas três fases que se acabam de referir: despedimentos, reduções de salários e outros desfechos que será difícil de precisar. Tomando consciência de todas estas consequências, começar-se-á a perceber porque é que não há governo que ouse tomar medidas verdadeiramente capazes de pelo menos pôr em causa o crescimento económico? E perceber também porque é que na comunicação social deste nosso planeta não surgem análises que considerem com profundidade o que nos espera? Será que, falhando as esperanças que se vão colocando no desenvolvimento tecnológico e nas promessas de redução na utilização de combustíveis fósseis, as emissões de GEE vão levar a muito mais caos na área climática (a que se acrescentarão ainda os problemas como o da subida dos oceanos e da incapacidade de as florestas actuarem como é necessário)?
Naturalmente que as questões de viabilidade relativas à criação das medidas referidas, muito em particular as de natureza fiscal, existem e impõem-se com clareza. Não seriam suficientes, nem concebíveis como justas e eficazes, iniciativas isoladas de um ou outro Estado no sentido de começar a promover tais medidas isoladamente. As iniciativas teriam que assumir contornos mundiais e conduzir a processos que passassem no mínimo por acordos do tipo dos existentes nas actuais COPs, ou que, de preferência, fossem coordenados pela ONU e garantidos pela aplicação de penalizações a aplicar aos não cumpridores. Refira-se que já houve no passado propostas ou sugestões, por órgãos da ONU, de ONGs ou de simples autores de obras literárias, de criação de tais impostos mundiais, que quase sempre tinham em vista reduzir as desigualdades existentes e não combater o caos climático, mas tais iniciativas falharam quase sempre. Apenas um caso terá tido algum desenvolvimento após avanços nesse sentido por parte de um antigo secretário geral da ONU (Boutros-Ghali, que desempenhou as suas funções de 1992 a 1996) – uma taxa mundial sobre os bilhetes de avião ou sobre as transacções financeiras. Essa taxa foi mais tarde criada por iniciativa da França e do Brasil mas é hoje aplicada por menos de uma dezena de países. Há opiniões de que o veto americano à recondução de Boutros-Ghali para um segundo mandato terá sido influenciado pela sua actuação em tal processo.[2]
Os obstáculos à referida criação de impostos mundiais, que já se adivinhariam da parte dos influentes estratos mais abastados e das grandes empresas multinacionais, viriam ainda certamente a ser reforçados pela influência que uns e outros têm nos Estados mais importantes. O argumento de que o desenvolvimento tecnológico vai permitir resolver as questões mais delicadas iria mais uma vez impor-se. Haveria por outro lado uma questão importante que exigiria solução: que aplicação dar aos fundos resultantes dos impostos mundiais? O objectivo não sendo a redução das desigualdades, não faria sentido investir tais fundos em gastos de natureza social ou em reduzir a carga fiscal dos mais desfavorecidos (o que conduziria apenas a introduzir alterações no tecido produtivo, com a procura global a manter-se e incidindo de modo diversificado sobre sectores diferentes). Contudo duas vias diferentes se imporiam que não deixariam no entanto de levar a resultados da mesma natureza se bem que afectando diferentemente os vários sectores produtivos. A primeira dessas vias era a subsidiação aos trabalhadores que tivessem perdido os seus empregos nos acima referidos sectores dependentes do turismo, da construção de imobiliário de alta qualidade e, em geral, de consumos ligados às classes mais abastadas, ou seja, aqueles que entrariam em crise com a imposição da progressividade na tributação. A outra via era a subsidiação de investimentos em áreas que permitissem aliviar as actuais pressões sobre o meio ambiente, em particular financiando a transição para a utilização de energias alternativas com uma atenção muito especial ao que se virá a passar nos países em desenvolvimento. Enfim, soluções que assumiriam grande complexidade na sua execução e que não deixariam de colocar novos problemas que neste momento são em grande medida imprevisíveis.
Um ponto adicional de natureza extremamente importante no contexto da relação que a comunidade mundial tem com um número considerável de países em desenvolvimento é o da evolução demográfica. No Anexo sobre populações é dado relevo à evolução nos próximos tempos da dimensão da população do planeta, com particular destaque para o horizonte que se estende até 2100. O primeiro aspecto que deverá ser posto em destaque é a projecção elaborada por órgãos da ONU do total da população mundial até 2100, a atingir então 10,8 mil milhões (a comparar com os cerca de 7,8 mil milhões actuais, valor já em si bastante preocupante). Embora havendo estudos que são menos pessimistas a tal respeito, um dos quais é referido no dito Anexo (com uma previsão inferior para 2100 de 8,8 mil milhões, mas com um valor intermédio de 9,7 mil milhões em 2064), não parece haver razões para as preocupações se reduzirem por muito que se avance no domínio das energias alternativas. Conforme então assinalado, três regiões do planeta (África subsariana, África do Norte e Médio Oriente) veriam a sua população aumentar (e como a seguir se precisará para alguns casos, de modo significativo) relativamente ao presente. As previsões da ONU, por exemplo, apontam para populações em 2100 de 403 milhões no Paquistão (221 em 2020 e 338 em 2050), 733 na Nigéria (206 em 2020 e 401 em 2050), 294 na Etiópia (115 em 2020 e 205 em 2050), 225 no Egipto (102 em 2020 e 160 em 2050), 286 na Tanzânia (60 em 2020 e 135 em 2050), 362 na República Democrática do Congo (90 em 2020 e 194 em 2050), 165 no Níger (24 em 2020 e 66 em 2050) e 188 em Angola (33 em 2020 e 77 em 2050). E, no respeitante a populações urbanas, por exemplo, em 2100: Lagos, 88,3 milhões (32,6 em 2050), Kinshasa, 83,5 milhões (35,0 em 2050) e Dar es Salaam, 73,7 milhões (16,0 em 2050), embora estas últimas previsões não tenham sido feitas pela ONU.[3]
A minha opinião é que basta olhar para estes números e estar consciente de que o planeta não poderá suportar o que constituiria uma agressão fortemente ampliada para perceber que alguma coisa está a falhar em tais futurologias. Será provavelmente, numa primeira perspectiva, a não consideração de que os Estados directamente ameaçados por tais evoluções se verão em breve obrigados a tomar medidas para as impedir (com os próprios habitantes a assumir atitudes que complementem tais medidas) e, numa segunda perspectiva, a incapacidade de assumir que inevitáveis desastres sociais haveriam de resultar desses aumentos demográficos exponenciais e se substituiriam às referidas medidas.
Um exemplo que poderá começar por evidenciar o que é referido para a primeira perspectiva é o que se passa na Índia, país que, com os seus 1,38 mil milhões de habitantes em 2020 (ver Anexo sobre populações) se posiciona para tomar conta do primeiro lugar que tem estado na posse da China (1,41 mil milhões na mesma data). O que há de novo, contudo, é que a Índia tem reagido num sentido que poderá evitar tal desenlace e já apresenta um índice de fecundidade de 2,0 (nas zonas urbanas tal índice é de apenas 1,6 e nas zonas rurais de 2,1), quando em 2015-2016 ele era de 2,2 e em 2005-2006 de 2,7. Naturalmente que, contudo, a população deverá continuar a aumentar dado que a natalidade irá ser ainda, durante algum tempo, superior à mortalidade (com o pico demográfico do país a poder atingir 1,6 mil milhões em 2047). Diga-se, entre parênteses e no mesmo sentido, que a Indonésia e o Bangladesh, países de dominante muçulmana, ultrapassaram a Índia em matéria de baixa das taxas de natalidade, enquanto, na própria Índia, no seu Estado mais alfabetizado (o Kerala), se havia verificado já nos anos 1990 uma queda da fecundidade para valores inferiores ao nível de substituição (induzindo-se portanto que, na Índia também, tais valores para a fecundidade estão correlacionados com os do nível do ensino). Por outro lado, neste país, o planeamento familiar está oficializado desde há décadas, procurando tornar acessíveis métodos contraceptivos a todos e a subida da idade do casamento. A opção das mulheres pela contracepção tem privilegiado a esterilização (tendo já atingido cerca de 38% das mulheres casadas e em idade de procriar), a qual tem sido apresentada como escolha mais frequente face às alternativas disponíveis: injecções contraceptivas, pílula e preservativo. Diferentemente do que se passa nos países ocidentais, onde a pílula contraceptiva tem a preferência das mulheres e a esterilização definitiva é rara.[4]
No relativo à segunda das perspectivas referidas – os desastres sociais que haveriam de resultar dos aumentos demográficos exponenciais – tais desastres já começam a resultar da evolução que se tem verificado nas últimas décadas e que têm adquirido maior relevo, conforme já exposto nos textos anteriores, no que respeita às consequências do aquecimento global. Prosseguir com tais aumentos demográficos e exigindo cada vez mais dos recursos do planeta só poderá amplificar os desastres e em vias que não serão só as do aquecimento global. Mas este será um tema que será abordado no próximo texto.
Lisboa, 7 de Janeiro de 2022
Filipe do Carmo
[1] Questão posta em evidência num artigo recente intitulado “Neutralité carbone: tous les scénarios passent para la sobriété” (Le Monde, 2021-12-17, página 36).
[2] Ver a estes propósitos o artigo “Un impôt planétaire contre les inégalités” da autoria de Jean-Marie Pottier, incluído no Hors-Série nº 10 de Les Grands Dossiers des Sciences Humaines (Dezembro 2021-Janeiro 2022).
[3] São previsões publicadas por um organismo da Universidade de Toronto, o Global Cities Institute. Esta referência, assim como as relativas às previsões da ONU, poderão ser consultadas numa publicação da Wikipedia – https://en.wikipedia.org/wiki/Projections_of_population_growth – com o título “Projections of population growth”.
[4] Ver os artigos “La fécondité en Inde sous le seuil de remplacement” e “La stérilisation, premir moyen de contraception des Indiennes”, na página 9 do Le Monde de 2021-12-24.