O TEATRO COMO TESTEMUNHO DAS MIGRAÇÕES PORTUGUESAS (12)
ABORDAGENS E EXPERIÊNCIAS ATUAIS | O Teatro e o combate à extrema-direita (12)
Damos início ao terceiro capítulo do DOSSIÊ sobre Teatro de Intervenção, depois de um primeiro enquadramento histórico e de um percurso por experiências concretas que serviram para ilustrar a abordagem prática que foi realizada em vários países de emigração antes do 25 de abril. Encetamos agora um painel de abordagens atuais começando por uma sistematização que Ricardo Correia nos organizou da peça de teatro Exílio(s) 61-74 e da experiência inédita da sua leitura online. Optámos por dividir a publicação desta peça escrita em 3 partes, sendo certo que no final do dossiê publicaremos todos os artigos que foram fragmentados, para facilitar a leitura online, na sua versão integral. Editado por Carlos Ribeiro | Sem Fronteiras
de Ricardo Correia
O TEATRO COMO TESTEMUNHO DAS MIGRAÇÕES PORTUGUESAS – EXÍLIO(S) 61-74 (12)
Ricardo Correia | Foto © Agente a Norte
“A história é como um mito, como um espelho onde se pode ler aquilo que foi o passado e aquilo que nos espera” Eduardo Lourenço
Em 2017 escrevi a peça de teatro Exílio(s) 61 -74, estreada numa produção da Casa da Esquina, estrutura de criação e programação sedeada em Coimbra, que dirijo artisticamente desde 2008. Para a construção dessa peça recolhemos testemunhos de quem tinha saído de Portugal entre 1961 a 1974 como: Emigrante, Desertor, Refugiado, Refratário, Exilado. E deparamo-nos com um caminho que nos levou a investigar a fuga como um gesto de protesto e de recusa à Guerra Colonial e ao Fascismo. Um mecanismo de luta, portanto. Tal como a peça Os Horácios e Curiácios de Bertolt Brecht, a fuga como uma estratégia para ganhar fôlego e cansar o inimigo.
Com esta peça tentámos reconstruir essa memória e os seus mecanismos para compreender o presente, os vários ciclos de migrações portuguesas. Mas esta peça só chegou num segundo momento, para falar dela, tenho de recuar uns anos a uma peça que documenta uma migração portuguesa mais recente.
1| ORIGEM
Para mim tudo começou com a peça O Meu País é o Que O Mar Não Quer que nasceu da minha estadia em Londres em 2013. A construção partiu do meu relato autobiográfico, como testemunha dessa vaga de emigração qualificada entre 2011-2015, recorrendo aos testemunhos de emigrantes qualificados, bem como a documentos (fotos, emails, estatísticas, cartas, notícias de jornais, etc.) e evidências desse acontecimento. Nesta peça / espetáculo (designo-a assim pois no meu caso escrevo – quase – sempre para um espetáculo que vou levar à cena, i.e., a escrita e a cena nascem e crescem, quase sempre, de mãos dadas) desenvolvi uma investigação sobre as razões da saída de Portugal da minha geração. Foram os anos sombrios e austeros da Troika em Portugal. Eu saí como muitos outros, mas não tinha desistido de Portugal. Procurei compreender quais os mecanismos para lutar lá fora sem me desligar do meu País de origem. Era uma peça / espetáculo sobre a história de uma geração que se perguntava se devia mudar o país ou mudar de país.
O Meu País é o Que O Mar Não Quer | Ricardo Correia
Mas esta questão não era nova para os portugueses. O Salto português nos anos 60/70 estava bem documentado (sobretudo o económico). E confirmei, no espetáculo O Meu país é o Que o Mar Não Quer, que essa foi uma realidade muito dura para os portugueses. Durante esse espetáculo, numa das cenas perguntava diretamente ao público: Alguém passou pela experiência da emigração? Que razões o levou a sair do país?
Ouvia as diferentes respostas e depois convidava duas pessoas a subir a palco para contar a sua história. Todos os espetáculos tivemos pessoas que tinham passado pela essa experiência (muitos devido à austeridade nos anos da TROIKA entre 2011-2015 e outros saídos nos anos 60 por motivos económicos e alguns por motivos políticos).
Durante a digressão O Meu país é o Que o Mar Não Quer em Lisboa no Teatro Meridional, duas pessoas, entre outras, levantaram o braço. Eram o Rui Horta (Coreógrafo e programador) e a Eugénia Vasques (Docente e investigadora teatral). Duas pessoas que muito admiro. Convidei-os para o palco. Ambos me contaram a sua experiência. O Rui contou a sua passagem por Nova Iorque, onde criou através da sua residência uma plataforma de circulação de criadores portugueses. A Eugénia, (minha professora na Escola Superior de Teatro e Cinema) contou-me da sua fuga para Paris, com o namorado em 69, consequência das ações na crise académica em Coimbra. Foi neste momento que decidi investigar essa memória, esse ciclo migratório, para saber quem somos, como chegamos até aqui e como isso influencia o que ainda poderemos vir a ser.
As duas peças convocam dois momentos diferentes um entre 2011 e 2015 em que vivíamos numa Democracia, mas muito condicionada pelos ditames financeiros impostos aos países do sul da Europa, e outro momento anterior, que durou o período da Guerra Colonial portuguesa de 1961 a 1974 em plena ditadura. O dramaturgo e encenador Hélder Costa um dos entrevistados para a peça Exílio(s) 61 -74 sintetizou as nossas diferentes migrações: “eu não estive exilado, eu obedeci ao programa Erasmus Salazar. Olha, e a tua geração foi no programa Erasmus Passos.” (2019, p.116)
Estas peças-documentos podem-se enquadrar na denominada dramaturgia do real. Obviamente que, em tempos conturbados, onde a disseminação de fake news, factos alternativos, ficcionados, leva ao ressurgir de um olhar sobre o teatro documental devido à necessidade de nos agarrar aos factos, evidências num mundo global e de incertezas, tal como refere a investigadora teatral, Carol Martin, em Dramaturgy of the Real in the World Stage:
It´s no accident that this kind of theatre [documentary theatre] has reemerged during a period of international crises of war, religion, government, truth, and information. Governments `spins´ the facts in order to tell stories. Theatre spins them right back in order to tell different stories. (2010, p. 23).
Em ambas recorri à ideia do arquivo como um gesto; a recolha de testemunhos e uso da história subjetiva como contraponto à História oficial e ao ator como fiel depositário das memórias de outros. Ao usar testemunhos procurava criar uma miríade de pontos de vista, alguns conflituantes, sobre temas transgeracionais que marcam a identidade portuguesa e ao analisar os movimentos históricos dessas temáticas questionar como o passado podia, ou não, influenciar o nosso futuro.
Como ponto de partida de Exílio(s) 61 -74 lidei com as seguintes questões:
O que leva a alguém sair do seu País?
Como se luta lá fora quando não nos deixam viver no nosso País?
Como se pode perdoar a quem nos deixou sem outra saída?
Qual a razão de não falarmos abertamente da recusa à Guerra Colonial?
Porque é que enterramos a memória no cimento armado dos condomínios privados ou futuros hotéis em antigas prisões políticas?
2| O PROCESSO DE CRIAÇÃO
Pesquisa de material e condução de entrevistas.
O trabalho iniciou-se com a pesquisa de material. Num ato de investigar e documentar o tema como processo de investigação e não de mero registo do real. Voltei à casa de partida. Conduzi uma entrevista com a professora Eugénia Vasques, que me indicou o seguinte entrevistado, o Hélder Costa. Depois, durante a pesquisa, entrei em contacto com a associação dos Exilados Políticos Portugueses 61/74 (AEP61/74), e entrevistei o José Torres, Fernando Cardoso, Rui Mota e o Fernando Cardeira. Todas as entrevistas foram registadas sonoramente.
Helder Costa
José Luis Torres Fernando Cardoso
Rui Mota Fernando Cardeira
Iniciei sozinho o processo por não existirem garantias de financiamento de levar a cena o projeto. Mas durante o período de investigação conseguimos fixar a equipa artística[i] e garantir a coprodução do TAGV e a participação no festival “Outras vozes, Outras Gentes” da Cooperativa Hermes com vários espetáculos. Ficámos com cinco semanas de trabalho até à estreia[ii].
Apesar do tempo de trabalho ser mínimo, decidimos (uso a 3ª pessoa do plural para dar conta do processo colaborativo) avançar e tornar o processo de pesquisa o mais participado por toda a equipa. Assim fomos em conjunto visitar a antiga Prisão de Peniche, o Museu do Aljube, o Centro de Documentação 25 de abril, e ao longo do processo consultamos vários materiais de apoio[iii]. E, claro voltamos às entrevistas que eu já tinha realizado. Porém tínhamos consciência que ainda nos faltavam ângulos sobre a temática e por isso decidimos conduzir mais entrevistas e transcrevê-las.
Entrevistámos os historiadores Rui Bebiano e Miguel Cardina que nos enquadraram historicamente este período. E entrevistámos militantes do PCP, o Adelino Silva e a Tila Cascais, e por fim, o cidadão José Dias. Haveria muitos mais ainda para entrevistar, o condicionalismo do tempo de criação levou-nos a encerrar esta fase.
Miguel Cardina Rui Bebiano José Dias
(continua temas seguintes: 3 – EDIÇÃO; 4 – DO TEXTO À CENA; 5 – A RECEÇÃO E O ARQUIVO COMO ATO DE TESTEMUNHO )