9 de Dezembro, 2024

Rússia invade Ucrânia. Começou a guerra

INTERNACIONAL | Conflito Rússia – Ucrânia

Os títulos dos jornais divergem na mensagem sobre a escala da intervenção russa na Ucrânia mas uma coisa é certa o agravamento generalizado das tensões entre a Rússia, a Ucrânia e os diversos atores da política internacional (Nato, EUA, UE) situa-se agora num palco de guerra que não nos pode deixar indiferentes.

Acompanhar a situação implica fornecer informação e divulgar matéria publicada que sirva para uma formação de opinião esclarecida estabelecendo como ponto de partida inquestionável uma visão pacifista e anti-guerra.

Divulgamos hoje um artigo do Le Monde Diplomatique – edição portuguesa cuja transcrição foi-nos autorizada , que remete para as origens e dinâmica dos conflitos existentes naquela região.

O que se sabe a esta hora

(da agência Reuters)

Agência Reuters

  • Forças russas dispararam mísseis contra várias cidades na Ucrânia. Tropas russas atacaram na costa ucraniana na quinta-feira, de acordo com responsáveis e os meios de comunicação no local, depois de o Presidente russo, Vladimir Putin, ter autorizado “uma operação militar especial” no Leste da Ucrânia.
  • As forças russas atacaram a Ucrânia a partir da Bielorrússia, da Rússia e da península da Crimeia, de acordo com os serviços fronteiriços ucranianos. O ministro da Defesa russo afirmou que os seus ataques aéreos não tinham como alvo as cidades.
  • O Presidente ucraniano, Volodimir Zelenskii, pediu aos líderes mundiais que imponham todas as sanções possíveis à Rússia, afirmando que Putin quer destruir o Estado ucraniano.
  • Os países da Europa Central condenaram o ataque russo e começaram a preparar-se para receber centenas de milhares de pessoas a tentar fugir da Ucrânia. Várias pessoas procuraram já sair de Kiev.
  • Biden vai reunir-se com os representantes do G7 esta quinta-feira para decidir mais medidas severas contra a Rússia. Os dirigentes da União Europeia estão preparados para aprovar um novo pacote de sanções contra a Rússia. Os embaixadores da NATO vão reunir-se de emergência esta quinta-feira.
  • A NATO activou na manhã desta quinta-feira os planos de defesa e irá reforçar os seus meios no Leste da Europa nos próximos dias. “A Rússia atacou a Ucrânia. Trata-se de um brutal acto de guerra. Este é um momento fundamental para a nossa segurança”, justifica o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg. 
  • Um avião militar ucraniano foi abatido e cinco pessoas morreram, disseram a polícia ucraniana e o serviço de emergência do estado à agência Reuters. A agência France-Presse (AFP) avança que pelo menos 14 pessoas seguiam a bordo do avião que se despenhou.

O Donbass aprende a viver sem Kiev

A região separatista que não reconhece a Ucrânia nem a Rússia

por LOIC RAMIREZ | enviado especial MD

Três anos depois do início do conflito entre Kiev e a região separatista do Donbass não parece haver qualquer solução. O presidente ucraniano Piotr Porochenko tenta agradar a gregos e troianos, hesitando entre a instauração de um bloco firme e o restabelecimento de ligações económicas controladas. Do lado de Donetsk, a população está a organizar-se, na expectativa de uma hipotética intervenção militar.

«Eles dispararam sobre o edifício na noite de 3 para 4 de Fevereiro, nós reabrimos a loja a 20, esta semana.» Agasalhada com o seu belo lenço e a sua capa, a vendedora mostra-nos os danos causados pelo exército ucraniano, antes de ir receber os clientes. A sua loja ficou sem janelas por causa do efeito de sopro das explosões. Como acontece em toda a periferia da cidade de Donetsk, o bairro Kievski carrega as marcas do conflito que opõe o governo de Kiev às milícias separatistas do Donbass, oficiosamente apoiadas por Moscovo. Edifícios esventrados e fachadas cortadas pelos rebentamentos de obuses recordam a intensidade de uma guerra que custou a vida a perto de duas mil pessoas desde Abril de 2014. «Até ao último momento, não pensei que o nosso próprio exército fosse capaz de disparar sobre nós!», exclama Sacha, um habitante de Donetsk, enquanto abre caminho pelo meio de crateras que esburacam as ruas do bairro. Enquanto os dois campos contam os respectivos mortos, as perspectivas de uma reintegração das «Repúblicas Populares» autoproclamadas de Donetsk (DNR) e do Lugansk (LNR) na órbita de Kiev vão ficando mais distantes. E com elas o objectivo último dos Acordos de Paz de Minsk, assinados em Fevereiro de 2015, entre a Rússia, a Ucrânia e os seus dois apoios ocidentais, a França e a Alemanha. Tanto mais quanto, nos territórios separatistas, a vida retoma o seu curso, sem depender de Moscovo e longe da capital.

A DNR, ratificada por referendo a 11 de Maio de 2014, não é reconhecida por nenhum país da Organização das Nações Unidas (ONU), nem sequer pela Rússia. No entanto, a «República», como aqui lhe chamam, ganha cada dia mais consistência. Na fachada dos edifícios públicos, a bandeira azul e amarela ucraniana deu lugar à da DNR: um fundo negro, azul e vermelho sobre o qual pontifica a águia de duas cabeças que o brasão russo também arvora. «Antes da guerra havia 800 alunos, agora são 665», explica Andrei Udovienko, director da Escola 61 no bairro de Kievski. No recinto da entrada estão expostas as fotografias de veteranos e «heróis» mortos durante a «grande guerra patriótica» contra a Alemanha nazi (1941-1945), ao lado de alguns rostos jovens de milicianos mortos durante o mais recente conflito. «São todos antigos alunos desta escola», precisa o director. «No auge dos combates, entre 2014 e 2015, os jovens mantiveram aulas por correspondência durante seis meses. A escola foi atingida por bombardeamentos. Por isso foram os pais e nós, os professores, que participámos voluntariamente na reconstrução», explica ainda Andrei Udovienko, com um sorriso doce que contrasta com a sua imponente estatura. «Os professores recebiam uma pequena ajuda da DNR, 3 mil grívnias de Setembro de 2014 a Abril de 2015 [entre 130 e 180 euros, consoante a cotação, que flutuou muito durante este período], em vez das 4 mil grívnias que recebiam antes da guerra [350 euros à cotação em vigor a 1 de Janeiro de 2014]. Hoje, a DNR paga-nos um salário, entre 10 mil e 12 mil rublos por mês [entre 170 e 200 euros].»

No centro da cidade de Donetsk, os apaixonados passeiam de mãos dadas, as crianças circulam nos parques ao volante dos seus triciclos de plástico. Em algumas paredes vêem-se inscrições rudimentares onde se lê «abrigo», seguido de uma seta, que perturbam a aparente atmosfera de paz. De repente ouve-se uma detonação, depois outra. O estalido dos disparos recorda que a frente de combate se situa a uns poucos quilómetros dali. Desde o início do ano regista-se um recrudescimento dos confrontos tendo como pano de fundo o bloqueio comercial entre Kiev e as regiões separatistas. Neste Inverno, as tensões concentraram-se em redor da estação de filtragem de água de Iassinovataia, na periferia de Donestk, recuperada pelo exército ucraniano a 27 de Fevereiro. A instalação alimenta bairros situados dos dois lados da linha de contacto.

Com o cair da noite, as ruas esvaziam-se. O cessar-fogo proíbe a circulação de civis entre as 23 horas e as 6 horas, deixando os ecos das deflagrações como únicos senhores da cidade. De manhã, o tráfego dos automóveis e dos autocarros reanima as avenidas, nada mostrando dos combates da véspera. À hora do almoço, as cafetarias enchem-se de jovens estudantes, rapazes e raparigas. De nariz colado ao ecrã do telemóvel, aproveitam uma pausa antes de regressarem às aulas.

Uma ascensão social permitida pela fuga dos quadros

«Durante a guerra, 30% dos estudantes e dos professores abandonaram o estabelecimento. Os estudantes regressaram, mas isso não aconteceu com todos os professores», recorda Larissa Kastrovet enquanto nos oferece uma chávena de chá. Reitora da Academia de Gestão e Administração, onde neste dia nos recebe, ela ascendeu a este cargo em Novembro de 2014 devido à partida do seu antecessor. Por que motivo optaram outros por ficar? Dois estudantes que interpelámos na sua sala de aulas respondem com uma evidência: «Porque aqui é a nossa casa».

A fuga de muitos quadros deixou um vazio que teve como resultado a chegada súbita de pessoas inexperientes a cargos decisivos da administração pública. Este fenómeno de ascensão social rápida beneficiou várias pessoas, entre as quais o próprio presidente da DNR, Alexandre Zakhartchenko, electricista de profissão. Maia Peragova, antiga professora primária, escrevia artigos na imprensa «por prazer», até que a «operação antiterrorista» contra os insurrectos pró-russos, desencadeada em Maio de 2014 pelo governo saído da «revolução da dignidade», mudou a sua forma de vida. Agora directora de um departamento do Ministério da Informação, ela resume bem a forma improvisada como se recuperou o controlo das instituições durante os dois primeiros anos do conflito, em particular no sector da comunicação social: «Quando a direcção do canal televisivo local K61 [agora o principal canal público] se pôs em fuga, os operadores recuperaram o material. O mesmo aconteceu nos jornais: os chefes de redacção partiram, deixando os jornalistas retomar as publicações, sem qualquer remuneração. No início, eram eles próprios que distribuíam os jornais pelos habitantes, porque os correios haviam deixado de funcionar».

Segundo o Ministério da Política Social ucraniano, 1,6 milhões de residentes da Crimeia e do Donbass fugiram dos combates. É difícil estimar a população que ficou nas repúblicas autoproclamadas. Estas cobrem as zonas mais urbanizadas de uma região onde viviam 6,5 milhões de habitantes antes da guerra e que, segundo as Nações Unidas, teria actualmente 2,3 milhões de pessoas a precisar de ajuda humanitária.

Para enfrentar as dificuldades, muitos aprenderam a viver com um pé de cada lado da linha da frente. O governo ucraniano, depois de ter cortado, em Novembro de 2014, o pagamento de pensões de reforma aos residentes da Crimeia e dos territórios não controlados por Kiev, instaurou um procedimento especial para as pessoas deslocadas (1). «Alguns reformados tomaram nessa altura a iniciativa de se registarem na morada de um familiar que tenha continuado a viver do lado ucraniano e recebiam duas pensões, a ucraniana e a da DNR. Esta prática tornou-se cada vez mais rara, porque as autoridades ucranianas reforçaram os controlos. Agora é preciso uma presença física de três em três meses no balcão para levantar a pensão», explica Andrei K., um jovem trabalhador de uma empresa de construção. No total, entre 800 mil e 1 milhão de pessoas, oficialmente deslocadas, atravessam regularmente um dos cinco pontos de passagem, sempre completamente cheios, o que representa um fluxo diário de 20 mil a 25 mil pessoas. No fim da Março, este número passou para perto de 42 mil, por causa de uma campanha de verificação do local de residência dos reformados e dos beneficiários de protecção social.

«Eu sou um dos raros estrangeiros que tem uma!», exclama, contente, Miquel Puertas, de nacionalidade espanhola, que exibe um dos 500 mil novos cartões bancários com o selo «Banco Central Republicano», postos em circulação e utilizáveis apenas no território da DNR. Bloguista que se opôs à «revolução da dignidade» que conduziu ao derrube do presidente ucraniano pró-russo Viktor Ianukovitch em Fevereiro de 2014, Miquel Puertas abandonou a Lituânia para ir para Donetsk no Verão de 2016. Professor, exerce agora a sua profissão na Universidade Nacional Técnica de Donetsk. «Antes pagavam-se em dinheiro vivo. Agora vou poder levantar directamente rublos ou até pagar uma cerveja no bar usando o cartão!»

A partir de Maio de 2014, e face à instabilidade da situação, os bancos ucranianos implantados em Donetsk começaram a fechar as suas agências, tendo em seguida cessado definitivamente de funcionar em toda a região separatista. Os habitantes que não dispusessem de um salvo-conduto para o território ucraniano tinham de se deslocar aos «bancos clandestinos» improvisados, que cobravam 10% sobre a transacção (2). «Para conseguir dinheiro vivo era preciso recorrer a agentes privados: em troca de uma transferência de dinheiro pela Internet eles forneciam-te esse montante em dinheiro vivo, depois de terem retirado a sua comissão e arranjado o dinheiro em território ucraniano», recorda Andrei K.

Em resposta, a DNR fundou, a 7 de Outubro de 2014, o Banco Central Republicano (BCR). Por esta instituição transitam os encargos com imóveis bem como as pensões de reforma, pagas em rublos. Na Primavera de 2015, cerca de 90% das transacções económicas eram efectuadas em moeda russa. Em Maio de 2015, o BCR, tal como o seu homólogo de Lugansk, abriu uma conta internacional num banco da Ossétia do Sul, uma república secessionista da Geórgia reconhecida desde 2008 por Moscovo, que provavelmente faz transitar por este canal a sua ajuda financeira.

O Kremlin não reconhece nenhuma das duas repúblicas separatistas, mas o presidente Vladimir Putin deu mais um passo na normalização destes territórios ao assinar, a 18 de Fevereiro último, um decreto que oficializa o reconhecimento «temporário» dos passaportes, das matrículas, das certidões de nascimento ou de casamento e de outros documentos emitidos pelas autoridades, enquanto os Acordos de Minsk não forem aplicados.

A russificação do território está nos detalhes

Da moeda ao fuso horário, agora alinhado pelo de Moscovo, a russificação deste território está nos detalhes da vida quotidiana. Incluindo na escola, onde a língua russa domina mais do que nunca. «Desde o início do ano escolar de Setembro de 2014 que o governo de Kiev se recusou a enviar-nos novos manuais escolares. Trabalhámos portanto com manuais russos», conta Andrei Udovienko. «Aumentámos as horas de língua russa e, agora, o exame final de estudos secundários inclui uma prova obrigatória de russo, e já não de ucraniano. Aumentámos a parte de autores russos nos Estudos Literários, sem por isso eliminarmos os autores ucranianos. Em Geografia, acrescentámos mapas do Donbass.» A DNR reconhece as duas línguas, o russo e o ucraniano, apesar de o estatuto oficial desta última ter sido eliminado em 2015 (3). Cabe aos pais escolher a língua em que o seu filho estuda. «Logo em Outubro de 2014, o número de aulas em ucraniano caiu para 4%, quando antes era de 15%. No regresso às aulas de 2016, dos oitenta alunos da primária [7 anos], só um quis continuar com o ucraniano. Propusemos-lhe por isso ir para uma outra escola, não longe, onde uma turma adaptada à sua escolha tinha aberto», afirma o nosso interlocutor. Quando lhe perguntamos se pensa que é possível haver uma reintegração na Ucrânia, Andrei Udovienko responde: «Não com o governo que hoje está ao comando em Kiev».

«Aqui o chefe é o povo», pode ler-se em grandes espaços de publicidade no centro da cidade. Na avenida principal, o rosto de Mikhail Tolstykh, mais conhecido pelo pseudónimo Givi, está espalhado em centenas de cartazes. O comandante, que ficou famoso durante a batalha pelo aeroporto de Donetsk do Outono de 2014, pereceu num atentado a 8 de Fevereiro último. O jovem «Estado», ao mesmo tempo que glorifica os seus heróis, apodera-se dos atributos da soberania. Nas ruas, automóveis da polícia, com a carroçaria impecável, exibem as cores da bandeira da DNR, tal como acontece com os emblemas dos uniformes dos agentes. Nas lojas, certos produtos, como os biscoitos ou a charcutaria, têm o selo «Fabricado na DNR», com as cores da bandeira.

Ainda que a ajuda económica de Moscovo, um segredo de Polichinelo, continue a ser essencial para o funcionamento das instituições, as novas autoridades depressa procuraram arrecadar algumas receitas dentro do território. Mergulhado no seu sofá, Luis Hernando Muñoz, dirigente de uma empresa de importação de café colombiano instalada em Donetsk há trinta anos, garante que, durante a primeira fase da guerra, em 2014 e 2015, vários estabelecimentos comerciais foram requisitados para formar a nova cadeia dos «supermercados republicanos», que se tornou muito popular por praticar preços acessíveis. «Eu sei que as receitas destas lojas foram enviadas para fundos utilizados para pagar toda uma série de coisas, entre as quais as pensões. Foi um meio para estabilizar a situação», pensa ele, ao mesmo tempo que mantém a discrição sobre os beneficiários directos e os outros usos deste rudimento de fiscalidade. Num segundo momento, o poder definiu como alvo as pequenas e médias empresas, «Desde o Verão de 2016, elas sofreram fortes pressões para se registarem junto das autoridades e pagarem os seus impostos à República», garante a responsável por um programa de desenvolvimento da ONU estabelecida até Dezembro de 2016 em Donetsk, que deseja manter o anonimato.

Até Kiev perder o seu controlo, a maior parte das minas e das indústrias estavam registadas oficialmente na Ucrânia, onde pagavam os seus impostos para continuarem a ter acesso ao mercado nacional. A questão era particularmente importante para a fileira metalúrgica, cujos produtos — do minério de ferro ao aço, passando pelo carvão — circulavam, até uma data recente, pelos dois lados da linha de demarcação. Perante a impotência do governo ucraniano em afastar os bloqueios organizados por militantes nacionalistas, Alexandre Zakhartchenko, o presidente da DNR, anunciou, a 1 de Março, a requisição de quarenta e três empresas, no essencial minas e activos do sector metalúrgico que são propriedade de Rinat Akhmetov. Este oligarca originário do Donbass (4) apoiou o campo separatista durante algum tempo, mas depois posicionou-se do lado de Kiev. O proprietário da empresa System Capital Management (SCM) Holding perdeu também o estádio Donbass Arena, onde distribuía regularmente ajuda humanitária, uma prova da influência que tinha junto dos habitantes de Donetsk. Segundo os dados recolhidos por uma deputada junto da administração fiscal, oito empresas da lista das requisições pagavam, só elas, perto de 1,3 mil milhões de grívnias (45 milhões de euros) de impostos por ano.

A efémera República de Donetsk-Krivoi-Rog

Vista de Donetsk, a aproximação com Moscovo parece ser menos motivada por um impulso nacionalista do que pelas iniciativas de Kiev destinadas a aprofundar o fosso em relação às repúblicas autoproclamadas. «Nacionalizar [as grandes empresas] não é bom nem mau: é uma necessidade para salvar os empregos e a actividade», argumenta Iana Khomenko, professora no Departamento de Economia Internacional na Universidade Nacional Técnica de Donetsk. «Por causa do bloqueio, temos de escoar a produção para a Rússia», explica ela, sob o olhar aprovador da sua chefe, Ludmila Chabalina. Esta última conclui o seguinte: «Foi a Ucrânia que nos obrigou a responder ao bloqueio». No início do conflito, em 2014, Luis Hernando Muñoz pagava 10 mil dólares por camião para atravessar os postos de fronteira das milícias nacionalistas. Com o reforço dos controlos em 2015, «tornou-se impossível fazer entrar o que quer que fosse», afirma ele. Agora, os seus produtos «passam pela Rússia, legalmente».

A 14 de Março de 2017, as autoridades da DNR anunciaram o encaminhamento dos primeiros comboios de carvão para a Rússia, enquanto na mesma altura o governo ucraniano prestava informações sobre a importação de antracite da África do Sul. O vizinho russo, sexto produtor mundial de carvão, não tem qualquer necessidade de importar este combustível. «É uma decisão puramente política. O objectivo é evitar que tudo colapse aqui e que a Rússia herde uma situação caótica na sua fronteira», presume Luis Hernando Muñoz. Uma parte do carvão do Donbass pode voltar a circular, fazendo um desvio pela Rússia… pela Ucrânia. Uma investigação do sítio Internet da Rádio Svoboda revelou que o carvão utilizado pela unidade industrial metalúrgica Azovstal, instalada na proximidade de Mariupol (em território controlado por Kiev), transita agora através de embarcações vindas da Rússia mas que será proveniente, segundo uma fonte local, das minas dos territórios separatistas (5).

A política da Ucrânia, longe de travar a autonomização da DNR, empurra-a para o Leste. O imenso vizinho eslavo parece oferecer uma solução alternativa razoável para recuperar a estabilidade, enquanto Kiev se torna a cada dia um pouco mais longínquo para as pessoas do Donbass. No imenso edifício do governo da DNR, anteriormente sede do governo regional, distingue-se ainda a forma, mais clara, do tridente, símbolo do brasão ucraniano, mesmo assim arrancado da fachada. «Aprende-se muito sobre um povo olhando para as suas estátuas. Aqui, a do poeta ucraniano [Taras] Chevtchenko ladeia a outra, maior, de Lenine. Mas a de Artiom é ainda maior», explica Miquel Puertas saindo do anfiteatro onde acaba de dar uma aula. De seu verdadeiro nome Fiodor Andreievitch Sergueiev, este revolucionário bolchevique é considerado o fundador da efémera República de Donetsk-Krivoi-Rog, nascida em Fevereiro de 1918, na sequência da Revolução de Outubro em Petrogrado. Episódio de uma guerra civil que dilacerou a Ucrânia entre o Exército Vermelho, as tropas do nacionalista ucraniano Simon Petliura, os exércitos brancos do general Anton Denikin e o exército insurrecto do anarquista Nestor Makhno, esta república autónoma acabou por ser anexada à República Socialista Soviética da Ucrânia em Fevereiro de 1919, sendo esta última, por sua vez, integrada na URSS em 1922. «As coisas aqui vêm de longe», conclui maliciosamente Miquel Puertas.



Loïc RamirezJornalista.

(1) «Humanitarian response plan 2017 — Ukraine», Relatório do Escritório de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (UNOCHA), www.humanitarianresponse.info, Novembro de 2016.

(2) Stéphane Jourdain, «À Donetsk, les habitants condamnés au système D face aux banques fermées», Agência France-Presse, 1 de Março de 2015.

(3) «Os legisladores da DNR pela retirada do estatuto de segunda língua oficial ao ucraniano» (em russo), Dan-news.info, 6 de Novembro de 2015.

(4) Ler Jean-Arnault Dérens e Laurent Geslin, «Ucrânia: de oligarquia em oligarquia», Le Monde diplomatique — edição portuguesa, Abril de 2014.

(5) «As empresas de Akhmetov recebem carvão das Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk, transitando pela Rússia» (em russo), 23 de Março de 2017, Radiosvoboda.org.

ARTIGO PUBLICADO EM MAIO 2017

O Le Monde Diplomatique – edição portuguesa presta um bom serviços de informação NOTA Sem Fronteiras – SF

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