Tão felizes que nós não éramos! – Uma História da Família

2 de novembro, 2022
Livros & Música | Nelson Anjos relê Andrée Michel
“Falava ainda Jesus ao povo, e eis que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora procurando falar-lhe. E alguém lhe disse: Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar-te. Porém ele respondeu ao que lhe trouxera o aviso: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E estendendo a mão para os discípulos, disse: eis minha mãe e meus irmãos. (Mateus 12:46-49)”
Desconheço se algum antropólogo, ou sociólogo, se terá já ocupado do estudo dos meandros que conduziram esta ideia de família, que os evangelistas – no caso, Mateus – atribuíram ao Nazareno, ao cristianismo anão e pedófilo que os crentes de sacristia hoje professam. Ou, na mesma linha de raciocínio, para tempos mais próximos, que caminhos, a partir de Marx, terão levado aos campos de concentração de Estaline.
A ideia bíblica da epígrafe não é estranha a alguns exemplos de modelo alternativo de família que Andrée Michel refere no seu livro, Sociologia da Família e do Casamento. Por exemplo, a família comunal da baía de S. Francisco, experimentada nas décadas de 60/70 do século passado por muitos casais de jovens. (Quem, desta geração, não recorda If you’re going to San Francisco?)

No seu livro a autora ocupa-se dos traços essenciais das diversas formas de família que ao longo da história se têm sucedido, centrando-se fundamentalmente na crítica à chamada família parsoniana – a família da sociedade industrial estudada pelo sociólogo norte-americano Talcott Parsons. Fundada na base do casal homem/mulher, com exclusividade sexual mútua e uma rígida distribuição de papéis por sexo. Homem na fábrica e mulher em casa. É a partir das suas opções feministas que Andrée Michel entra em rotura com este modelo e seus derivados. Da família de carreira dual – onde marido e mulher exercem atividade laboral fora de casa – diz a autora que, fora a melhoria de estatuto no seio da família, consequência de uma maior autonomia económica, a mulher fica agora sujeita a uma condição de dupla exploração: no emprego, onde em regra aufere um salário inferior ao do homem, para o mesmo trabalho; em casa, como prestadora de serviços ao agregado familiar e sexo doméstico ao marido – sexo sério, de procriação. Um e outro não remunerados.
Tão felizes que nós não éramos! – poderia começar assim a história do casamento monogâmico das sociedades industriais. A exclusividade sexual na família monogâmica, principalmente por parte do homem, nunca passou de promessa: para as classes mais abastadas havia a amante; para os mais desfavorecidos, a casa de prostituição. A mulher, salvo um ou outro caso de maior audácia, e consequente escândalo público no caso de se tornar conhecido – puta e desavergonhada eram os adjetivos mínimos – contentava-se com fantasias do espírito para amenizar o tédio que não tardava a instalar-se na relação. Não poucas vezes sucedia-se a altercação e a porrada, que não se designava ainda por violência doméstica.
Andrée Michel escreve no início da década de 80. Mas, lá por fora, lésbicas e gays reclamavam já direito a constituir família reconhecida por lei; Lévy-Strauss já tinha concluído que “a monogamia não é um atributo da natureza humana” e o homem é tendencialmente polígamo; Simone de Beauvoir já tinha dito que “não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”. Mais tarde Judith Butler haveria de escrever que, “mesmo que os sexos pareçam ser inquestionavelmente binários na sua morfologia e constituição (o que iremos pôr em causa), não há nenhuma razão para assumir que os géneros devam igualmente ser dois”. Por cá, “nós todos bem”: tínhamos a “escrava do lar”, o “quanto mais me bates mais gosto de ti”, o ciúme a traição e a saudade, e o fado que cantava tudo isto.
É verdade que já passaram quarenta anos e, à época, não existiam ainda as novas formas de “parentesco digital”. Mas, considerando o atávico conservadorismo da instituição família, em geral, e o nosso proverbial atraso, em particular, o livro de A. Michel mantém atualidade e exige leitura obrigatória.
nelson anjos

NOTA | SEM FRONTEIRAS | Andrée Michel, feminista universitária e ativista, resistente a todos os conflitos, morreu em 8 de fevereiro de 2022 aos 101 anos. Esta fervorosa ativista antimilitarista e anticolonialista dedicou a sua vida à luta pela justiça e liberdade, à luta contra todas as formas de opressão e contra o impacto do sistema militar-industrial nas dominações de classe, raça , sexo. Ela atravessou este século e o mundo como uma cientista pioneira e humilde, à espreita da menor injustiça, com o objetivo de melhor analisá-la e combatê-la.