COMBATENTES DA LIBERDADE | De Aristides a 72529 em Dachau
SEM FRONTEIRAS | 24 de novembro 2020 | Combatentes da Liberdade | Sobre Raoul Duret
Raoul fala de 400, mas terão sido muitos mais. O apoio a judeus na passagem da fronteira em tempo de guerra, neste caso para a Suíça, não nos deixa indiferentes. O nome de Aristides Sousa Mendes vem-nos à cabeça e avaliamos estes atos como heróicos.
Mas Raoul Duret não foi um mero passador para a outra margem. Resistiu contra a ocupação nazi de forma combativa e contra a barbárie dos campos de concentração com a força da esperança. Manuel Branco, que conhece os protagonistas e vive esta história com a sua alma militante de sempre, a partir de Grenoble, revela-nos uma família de resistentes.
por Manuel Branco
Resistentes, porque a consciência do mundo libre lhes enchia a existência e a necessidade humana de não vergar corpo nem cabeça.
A vida nem sempre foi fácil para a família Duret. Quando habitava as montanhas de Torchebise (Habère-Lullin), Louis François Duret tinha ambições e cedo se apercebeu que para assegurar a vida dos seus era necessário procurar outros horizontes. Mais terra e melhores culturas. Procurando uma vida melhor, que desse alimento a toda a família, em 1938 desceu das suas montanhas para Chens-sur-Léman à beira do lago Léman, frente à Suíça.
Mulher com mão de ferro
Em Chens, trabalhar a terra foi a ocupação do pai, dos 4 filhos e 3 filhas, enquanto a mãe Ida Duret, mulher de carácter, com mãos de ferro, alinhavava o dia a dia com os meios de que dispunha. Em tempos difíceis todos deitam mão à tarefa.
Mas veio a guerra e a capitulação de Pétain em 1940. A ocupação nazi, era insuportável.
A urgência de ser libre, a necessidade de defender os princípios morais que não são privilégio de eruditos, depressa se impõe a toda a família Duret.
Família no Gilbert
Entram na Resistência, organizados no grupo Gilbert. Adolphe Duret deserta do Serviço Trabalho Obrigatório (STO) para a Suíça em 1943. Ao serviço da Resistência, Lucette, Raoul e Edmond passam mensagens para Paris, Narbonne e Genebra. Como estão perto da fronteira ajudam a passar para a Suíça homens, mulheres e crianças. São judeus perseguidos, emissários de De Gaulle, pilotos abatidos. Raoul afirma hoje que foram“pelo menos uns 400”. Mas, entretanto, a traição rodou à volta deles e o ocupante encontra sempre alguém para denunciar (denúncias que fazem lembrar os indicadores pidescos).
Raoul Adolphe
Lucette Raymond
A denúncia foi fatal e, no dia 23 de Abril de 1944 , Louis François Duret e dois dos seus filhos Raoul e Edmond Duret foram presos na casa onde habitavam em Chens-sur-Léman (Haute-Savoie), numa propriedade agrícola que lhes dava o sustento. A filha, Lucette, que escondia as mensagens numa caixa de creme para a cara e que vinha de cumprir uma missão para a Resistência em bicicleta, foi avisada para não ir para casa porque a Gestapo estava lá.
Prisões e deportações
São presos, interrogados, maltratados no Pax em Annemasse onde passaram 699 prisioneiros e onde muitos perderam a vida, na cave deste Hotel transformado em prisão pela Gestapo. Depois de uma passagem em Compiègne, no dia 18 de Junho de 1944, foram levados numa carruagem de comboio, uns em cima dos outros, para o Campo de concentração nazi de Dachau. Raoul recebeu o número de matricula 72529, pois a partir daí deixou de ter nome, passou a ser um número.
Sobrevivente de Dachau
Raoul Duret é hoje o único membro da família, sobrevivente de Dachau, onde morreram 40.000 prisioneiros. O pai foi assassinado no Campo de Concentração e o Edmond, seu irmão, veio a falecer já depois da libertação da França. Em 1953 Raoul e Adolphe, casados e com filhos para criar, emigraram para o Canada com receio de voltar a viver o que tinham vivido e, ao mesmo tempo, para procurar soluções de vida. Adolphe veio a falecer com 32 anos em Trois Rivières no Québec.
Raoul, hoje com 92 anos, guardou bem fechado no fundo da alma todos estes acontecimentos e, só agora, mais de 70 anos depois, por via da insistência da sua neta Emanuelle, decidiu abrir a gaveta da sua memória e, entre outras, dar uma entrevista à Rádio Canada.
Alertar a malta
Este tipo de testemunho é importante para alertar a malta jovem sobre o que se passou e sobre o que os aprendizes fascisantes são capazes de nos preparar.
À pergunta para o Québec se era possível divulgar em Portugal este testemunho, Raoul respondeu, sem hesitar, “claro que sim”.
Apesar do que passou na vida, Raoul continua lúcido. Se não falou nestes anos todos que passaram, agora testemunha e reage com convicção.
Há dois anos em Annemasse, em casa do sobrinho Gérard, em conversa à mesa, corrigia quem falasse dos Alemães, da seguinte forma “os Alemães não, os nazis. Quando estava em Dachau alguém me punha à cabeceira da cama uma batata. Intrigado, um dia procurei saber quem era e, qual não foi o meu espanto, quando constatei que era um soldado alemão. Portanto os alemães, não” insistia, durante a conversa e logo a seguir adiantava “não nos podemos esquecer que havia resistentes alemães“.
Grande lição de respeito, humanidade e solidariedade.
Homenagem em Chens
Em março deste ano, em Chens, teve lugar uma homenagem aos resistentes da família Duret. Muita gente presente e muita emoção, com muitos testemunhos que foram apresentados. Com os novos meios de comunicação falou-se em directo com o Raoul no Canada.
Foi um bom momento de conversa e de testemunho tendo havido algumas interações entre o Raoul e a assistência. A presença de jovens e a recordação de tempos que nunca deviam ter existido constituiu uma lição para os tempos presentes no mundo e na Europa.
Longo caminho a percorrer
As ideias nefastas continuam a rodar à nossa volta, ontem ”na noite calada com pés de veludo”, hoje, à luz do dia com voz em sessões plenárias. É necessário, como já aqui escrevi, gritar, essa forma de ventura já chega!. A atitude de certos dirigentes mundiais e europeus ensinam-nos que há um grande caminho a percorrer e que os horrores do passado, em vez de servirem para a humanidade, são constantemente desenterrados e procuram germinar de novo.
Ontem 22/11/20 faleceu na Suíça, com 101 anos, a deportada do campo de Ravensbrück, Noëlla Rouget, que quando se dirigia aos jovens de uma turma, numa aula, afirmava “sou uma das ultimas deportadas em vida que sobreviveu ao inferno e consegui respeitar a promessa que fiz aos nossos mortos de testemunhar enquanto a vida o permitisse“.
Manuel Branco 23/11/20
A homenagem de Manuel Branco. Aguarela.
Fotos © cedidas pela família de Raoul Duret , © foto da cerimónia de homenagem, Manuel Branco.