14 de Setembro, 2024

História com H |Participação cívica e política, nunca mais me abandonou

SEM FRONTEIRAS | 25 de novembro de 2020 | Histórias com H grande| Eduardo Graça

Há episódios que marcam toda uma geração. São contextos que aparentam ser meramente conjunturais e ocasionais, mas a sua carga política, económica, social, cultural inverte o discreto caminho da História, acelerando vários fatores críticos em presença.

Não é bem o efeito da borboleta do Edward Lorenz mas podemos certamente atribuir às cheias de 1967 um atributo de acelerador, nem que tenha sido, só das consciências. Eduardo Graça relata-nos aqui a sua experiência daquele domingo inesquecível de novembro.

As trágicas cheias de 25/26 novembro 1967

por Eduardo Graça*

No dia 25 de novembro de 1967, era sábado, lembro-me de sair, era já tarde/noite, do ISCEF, pouco mais de um ano após ter iniciado os estudos naquela escola. Teria ido, certamente, participar numa reunião ou, mais prosaicamente, jantar na cantina da Associação de Estudantes. Ao sair devo ter feito o caminho de casa, um quarto alugado, ao cimo da Calçada da Estrela. (hoje, passados tantos anos, este percurso e sua envolvente, está, praticamente, igual). Chovia muito, mas não estranhei porque é normal chover nesta época do ano. Não levava qualquer resguardo para a chuva, que nem me pareceu excessiva, e caminhei colado às paredes até chegar ao destino. A minha perceção da chuva que caía naquela hora não me permitiu sequer imaginar as consequências que haveria de provocar. Chovia, simplesmente.

No Técnico

Na manhã do dia seguinte, domingo, devo ter feito o caminho oposto, corriam as notícias de inundações em diversos sítios de Lisboa e arredores, e devo ter-me dirigido ao Técnico para me juntar à gigantesca mobilização estudantil que se organizou para avançar para as zonas mais atingidas em socorro das vitimas e no apoio à reparação dos estragos. O quartel general, que me lembre, havia sido montado no Técnico e deve ter sido a primeira vez que, à margem dos poderes instalados, com autonomia e mobilizando recursos próprios, se promoveu uma ação voluntária juvenil de grande envergadura à margem da política oficial do regime. Foi um processo organizado que enquadrou a vontade espontânea de uma multidão de jovens estudantes ávidos de participação cívica e política.

Alhandra

Fui numa brigada para Alhandra munidos de meios rudimentares e lembro-mo com nitidez de nos afadigarmos a limpar ruas no meio da maior destruição que se possa imaginar. Retenho na memória o ambiente de caos e de tensão pois, afinal, estávamos a participar numa ação voluntária não autorizada que, naquela época, comportava riscos pessoais. Não havia medo, mas necessidade, e vontade de ação.Os meios para o socorro eram escassos, mas o que contava, de verdade, era participar, prestar solidariedade, ver com os próprios olhos in loco o que, de súbito, nos surgiu como uma calamidade de enormes proporções.

Cheias de 1967 – foto © LIFE

Uma força coletiva, sem medo

Uma pá na lama, os destroços, uma palavra de conforto e incentivo, uma força coletiva que enfrentava sem medo a situação dramática de populações desprotegidas e, afinal, um regime decadente acobertado na ignorância, na censura e na repressão.

No que me respeita ficou uma experiência sem dissabores. Não poderia imaginar que estávamos nas vésperas da queda de Salazar e da emergência, em 27 de setembro de 1968, do governo de Marcelo Caetano, menos de um ano depois daquelas trágicas inundações. Afinal aquela gigantesca ação voluntária havia de contribuir, de forma relevante, para o início do processo politico que desembocou no 25 de abril de 1974.

Não foi a minha primeira participação num movimento cívico, com vocação política, (havia participado antes nas “eleições” de 1965) mas foi a ação mais impressiva e intensa que jamais esqueci e que muito contribuiu para configurar uma vontade de participação cívica e política que nunca mais me abandonou.

Eduardo Graça nasceu em Faro. Licenciado em Organização e Gestão de Empresas pelo ISCEF/Lisboa. Fundador e dirigente do MES. Desde Fevereiro de 2010 presidente da direção Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES).

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