O TEATRO COMO TESTEMUNHO DAS MIGRAÇÕES PORTUGUESAS – Parte 2
ABORDAGENS E EXPERIÊNCIAS ATUAIS | O Teatro e o combate à extrema-direita (13)
Damos seguimento à publicação da sistematização que Ricardo Correia nos organizou da peça de teatro Exílio(s) 61-74 e da experiência inédita da sua leitura online que relataremos na terceira parte.
Na primeira parte Ricardo Correia relatou-nos as ORIGENS e o PROCESSO DE CRIAÇÃO. Entramos agora no processo de Edição através da sua pena.
3| EDIÇÃO
Foi nesta fase que nos confrontamos com questões de autoria, apropriação e autenticidade. Numa primeira tarefa, coube aos atores transcrever uma ou duas entrevistas e funcionar como um fiel depositário desse testemunho. A apropriação foi feita através desse ato de transcrição. Um ato de tradução dos ritmos, das pausas, da cadência de cada entrevistado para a página do papel. De apropriação da sua história de vida e dos seus pensamentos.
A tarefa de edição dos testemunhos cabia-me a mim, e seria nesse confronto com o material transcrito que iria originar um olhar sobre o tema. A reescrita é autoria. Como refere João Maria André sobre esta peça “O trabalho de um escritor e de um encenador de teatro documental é um trabalho de curadoria: curador da memória, do tempo, do silêncio e do grito suspenso no rosto diluído da História” (2019, p.173). Entendo a edição como um ato de autoria. Pois em cada momento tenho de fazer escolhas. Decisões sobre o material. O que fica? O que sai? Como manter a fidelidade do testemunho e condensá-lo em 3 minutos? E este trabalho é mais próximo do teatro ficcional do que pode parecer. Tal como refere Carol Martin em Dramaturgy of the Real in the World Stage: “Documentary theatre creates its own aesthetic imaginaries while claiming a special factual legitimacy.” (2010, p.18)
Deste modo, a autenticidade resulta do confronto entre a fidelidade dos testemunhos com o processo de seleção, edição e organização desse material numa forma dramática suficientemente articulada que permita que o texto seja mais do que uma colagem de testemunhos ou uma exposição de estatísticas e factos.
Daí que em Exílio(s) 61-74 tentei estruturar o texto de forma fractal, com várias dimensões e pontos de vista sobre o tema, para que na sua devolução à comunidade (as pessoas que deram o seu testemunho) se sentissem identificadas e representadas.
Como refere Robin Soans, Never forget it´s someone´s life (..) But do i ever cheat? Is there a tension between being truthful to the interviewees and creating something that i know is going to work theatrically? The answer is yes – but not a lot(2008, p. 41)
Na verdade, usar as vozes dos entrevistados, ainda que de forma editada permitia a democratização dessas narrativas, mais marginalizadas, sobre o tema e concorria para um olhar do fenómeno da emigração através de uma poética do quotidiano.
Neste processo de edição comecei a usar o coro cruzando a história subjetiva (micronarrativas) com a linha do tempo da história oficial para avançar a cronologia da saída de Portugal. Quase sempre tendo como destino Paris.
Por isto tudo, várias questões de ética contaminam este processo:
Como editar os testemunhos e usar a voz de outra pessoa no espetáculo?
Que tipo de representação exige um projeto desta natureza?
Quais as expectativas das pessoas entrevistadas a ver o espetáculo?
4| DO TEXTO À CENA
O Ator como fiel depositário dos testemunhos.
Por norma, tentei atribuir cada testemunho a um dos atores que tinha ouvido a entrevista e transcrito a mesma. O trabalho do ator foi entendido como um veículo das palavras das pessoas que nos testemunharam a sua experiência de vida.
O trabalho do ator foi sempre descobrir o ritmo, timbre e débito do testemunho e com isso, apresentar em vez de representar a pessoa.
Decidimos para tornar mais transparente o ato de montagem, contar a nossa experiência de construção do espetáculo e relação com os testemunhos e sua apropriação. Questionando sempre, como indica o título da cena de abertura. Título roubado a uma canção de Sérgio Godinho:
Pode alguém, ser quem não é?
A mesa como espaço de mediação entre o arquivo e a cena.
No espetáculo usámos uma mesa, com uma câmara que captava em tempo real as provas de modo a aferir a veracidade das histórias, criando um pacto de credibilidade com o público sobre a autenticidade desse material. O facto de manipularmos esse material à vista do público permitia tornar menos opaco o nosso ato de montagem. Assim ao manipular, à vista do público, estes documentos procurámos performá-los de forma híbrida, ou seja, usá-los como evidências do real, atestando a veracidade do que era dito, mas também como um espaço ficcional que lançasse um olhar artístico e estético sobre os factos. Usamos mapas do salto, livros censurados à época, fotografias e documentação da fuga, notícias da imprensa da época, passaportes, etc.
5| A RECEÇÃO E O ARQUIVO COMO ATO DE TESTEMUNHO
Esta experiência teatral permitiu, ao público conhecer estes testemunhos, lançando sobre eles uma nova luz, e com isso criar um ato de partilha de memória que foi revelada a cada espetáculo.
Por fim, estas peças O Meu País é o Que o Mar Não Quer e Exílio(s) 61-74 testemunhos das migrações portuguesas foram devolvidos ao arquivo, desta feita em forma de livro, com o título O meu país é o que o mar não quer e outros peças, editado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, na coleção Dramaturgo em 2019.
A peça Exílio[s] 61-74 está também editada em França com edição bilingue pela editora Les Presses universitaires du Midi da Universidade de Toulouse – Jean-Jaurès (UT2J) da antologia Frontières da Colecção Nouvelles Scènes, 2020.
Saliento a crença que o arquivo ao ser consultado é possível acioná-lo, daí ser um novo ato de testemunho e de transmissão de memória.
Exílio(s)61-74
O meu país é o que o mar não quer
#ParceirosECOS. Casa da Esquina
Texto de Ricardo Correia a partir de colagens
de testemunhos de exilados, refractários
e desertores portugueses entre 1961 e 1974
( Continua, parte 3 – leitura encenada da peça Exílio (s) 61-74)